Ecos do Silêncio — Textos Zen


A Vida de Eihei Dôgen

Philip Kapleau


Nascido de família aristocrática, Dôgen ainda criança já evidenciava sua inteligência brilhante. Conta que, com quatro anos, lia poesia chinesa, e com nove anos leu uma tradução chinesa do Tratado sobre o Abhidharma. O sofrimento que experimentou com a morte de seus pais — na de seu pai ele tinha apenas três anos e na de sua mãe, oito anos — sem dúvida alguma imprimiu em sua mente sensível a consciência da transitoriedade da vida e o motivou a fazer-se monge. Iniciado ao monaquismo budista com tenra idade, começou seu noviciado no Monte Hiei, o centro do buddhismo escolástico no Japão medieval, e estudou, nos anos que se seguiram, as doutrinas Tendai do buddhismo. Com mais ou menos quinze anos atormentava-o uma pergunta que se tornou o centro em torno do qual girou toda a sua luta espiritual: "Se, como dizem as outras, nossa natureza essencial é bodhi (perfeição), por que será que todos os buddhas têm de lutar para atingir a iluminação e a perfeição?

Sua insatisfação pelas respostas que lhe foram dadas no Monte Hiei levou-o finalmente a Eisai Zenji, que havia trazido os ensinamentos da escola Rinzai do Zen-buddhismo da China para o Japão.

A resposta de Eisai à questão de Dôgen foi: "Nenhum Buddha é consciente de sua existência (isto é, da sua natureza essencial), enquanto os que estão animalizados, grosseiramente iludidos, têm consciência disso". Em outras palavras, os buddhas, precisamente porque são buddhas, não mais pensam em ter ou não uma natureza perfeita; somente os que vivem iludidos pensam nestes termos. Com estas palavras, Dôgen obteve uma realização interior que dissolveu aquela profunda dúvida. Há todos os indícios de que esta mudança aconteceu durante uma entrevista formal (jap. dokusan) entre Eisai e Dôgen. Ê preciso ter em mente que este problema preocupou Dôgen sem descanso, por algum tempo, e lhe bastaram as palavras de Eisai para levar sua mente a um estado de iluminação.

Desde então, Dôgen iniciou o que passaria a ser uma curta aprendizagem de disciplina sob Eisai, que faleceu naquele ano, e teve como sucessor seu com Myôsen resolveu um considerável número de kôans e finalmente recebeu o inka (transmissão). Apesar de toda esta habilidade, Dôgen ainda se sentiu espiritualmente irrealizado e esta inquietação levou-o a empreender a viagem à China, então muito perigosa, em busca da completa pacificação da mente. Permaneceu em todos os mosteiros reconhecidos, praticando, sob muitos mestres, mas não se satisfazia na sua busca de total libertação. Finalmente, no famoso Mosteiro de T'ien-t'ung, que acabava de ganhar um novo mestre, ele conseguiu a plena iluminação, isto é, a libertação do corpo e da mente através das palavras pronunciadas por seu mestre Nyojo: "Você deve adormecer o corpo e a mente".

Diz-se que estas palavras foram proferidas por Nyôjô no início de um período formal do zazen, de manhã cedo, quando fazia sua ronda de inspeção. Descobrindo um monge adormecido, Nyôjô repreendeu-o por sua tibieza. Então, dirigindo a palavra a todos os monges, continuou: "Vocês precisam exercitar-se com todas as forças, mesmo com o risco de suas vidas. Para atingir a iluminação perfeita é preciso que adormeçam isto é, se libertem de todas as concepções do corpo e da mente". Quando Dôgen ouviu esta última frase os olhos de sua mente repentinamente se abriram numa torrente de luz e de compreensão.

Mais tarde Dôgen foi ao quarto de Nyôjô, acendeu uma vareta de incenso (gesto cerimonial reservado em geral para ocasiões especiais), e prostrou-se diante de seu mestre na forma habitual.

"Por que está você acendendo uma vareta de incenso?" perguntou Nyôjô. Seria desnecessário dizer que Nyôjô, um mestre de primeira classe, que havia recebido Dôgen muitas vezes em dokusan e conhecia por isto seu estado mental, percebeu imediatamente, pelo andar de Dôgen, suas prostrações e seu olhar cheio de compreensão, que havia tido uma grande iluminação. Mas Nyôjô, sem dúvida alguma, queria ver a resposta que esta pergunta, aparentemente tao inocente provocada, para avaliar a extensão do satori (iluminação) de Dôgen.

"Experimentei como se adormece o corpo e a mente", disse Dôgen.

Nyôjô exclamou: "Você adormeceu o corpo e a mente, em verdade o corpo e a mente adormeceram".

Mas Dôgen protestou: "Não me dê sua sanção tão prontamente!"

"Não estou sancionando prontamente".

Dôgen continuou: "Mostre-me que não está sancionando prontamente" e Nyôjô repetiu: "Isto é corpo e mente adormecidos", demonstrado.

Então Dôgen prostrou-se novamente diante de seu mestre com um gesto de respeito e gratidão.

"Isto é o adormecimento adormecido", disse Nyôjô.

(Kapleau, Philip. Os Três Pilares do Zen. Coleção Corpo e Alma.
Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1978. Pág. 23-25. Clique aqui para adquirir o livro.)


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