Ecos do Silêncio — Textos Zen


Ikamyôju

Uma Pérola Resplandecente


O Grande Mestre Soichi, do Monte Gensha, viveu durante a dinastia Grande Sung. Seu nome de monge era Shibi, e seu nome de família era Sha. Antes de virar monge, adorava pescar e trabalhava com seu barco na região do Rio Nandai, onde aprendeu a pescar com alguns amigos. Mas certamente por aquela época ele ainda não esperava pescar o "peixe dourado", que se fisga a si mesmo. 

Quando tinha trinta anos de idade, no início do período de Kansu [860-873] da dinastia T'ang, ele reconheceu o Caminho Budista como seu, e repentinamente renunciou ao mundo. Deixou seu barco e entrou fundo nas montanhas, finalmente estabelecendo residência no Monte Seppo, onde se tornou discípulo do Grande mestre Shinkaku. Praticava o Caminho incessantemente, dia e noite. Um dia decidiu ir visitar alguns outros Mestres, para aprofundar sua prática. Fez seus preparativos, arrumou sua bagagem e encetou viagem. Contudo descendo a montanha, deu uma violenta topada numa pedra; começou a sangrar e doía muito, mas de repente ele exclamou: "Este corpo não existe, de onde provem esta dor?"

Com isto voltou a seu Mestre Seppo. Mestre Seppo, lhe perguntou: "Foi só para isto que você saiu em peregrinação, para cortar o pé e se machucar?" 

Gensha disse: "Pára de me gozar!" 

Mestre Seppo achou esta resposta excelente, e lhe disse: "O que acaba de dizer, é o que todos deveriam dizer, mas não têm sua sinceridade. Pode ir adiante, se quiser, e visitar outros mestres."

Gensha contudo replicou: "Bodhidharma não veio à China e o segundo ancestral não foi à Índia". Mestre Seppo concordou e elogiou esta resposta.

Gensha era pescador e não viu jamais nenhum dos volumosos sutras ou comentários sobre os mesmos, nem em sonhos. Mas, colocando sua sincera decisão acima de tudo mais, com sua força de vontade fora do comum, logo sobrepujou os demais monges em suas práticas. Mestre Seppo considerava-o seu melhor discípulo. Gensha usava sempre um manto simples de pano, todo remendado; como roupa íntima usava papel. Seu único mestre foi Seppo, e do Dharma de seu mestre nunca se desviou. Depois de se tornar um Mestre, dizia o seguinte como explicação única do que vinha a ser o buddhismo: "O universo inteiro é uma pérola resplandecente".

Uma vez um monge lhe indagou: "Ouço dizer que ensinas que o universo inteiro é uma pérola resplandecente. O que devemos compreender com isto?"

Gensha replicou: "O universo inteiro é uma pérola resplandecente. O que há para compreender ou interpretar?"

No dia seguinte, o mestre mesmo perguntou ao monge: "O universo inteiro é uma pérola resplandecente. Qual tua interpretação deste fato?"

O monge retorquiu, confiante: "O universo inteiro é uma pérola resplandecente, o que há para compreender?"

"Agora já te inteirastes", replicou Gensha, "que mesmo na Caverna dos Demônios da Montanha Obscura, a liberdade completa está funcionando".

Este ditado, "O universo inteiro é uma pérola resplandecente", foi criado por Gensha. Quer dizer que o universo não está limitado por idéias de grande ou pequeno, máximo ou mínimo; não é quadrado ou redondo, não é centrado, animação ou brilho. Ao conseguirmos transcender estes conceitos, o universo emergirá. Não existem a morte e vida independentes, nem o ir e vir; estas mudanças são a própria vida dos buddhas, e a tradução mesma da realidade. Por este mesmo fato é que o passado já se foi, e o presente vai se escoando neste instante. Quanto ao seu significado último, quem o poderá limitar somente ao movimento contínuo da vida e da morte de um lado, ou da imobilidade do outro?

Quando o monge indagou sobre "O universo inteiro," parecia haver ali uma idéia de sujeito e objeto; mas de fato estes não são duas coisas separadas, mas um contínuo sem fim. De certa feita um monge perguntou a seu mestre, sobre o significado do ditado, "Ao se manifestarem as sensações a pessoa se separa da sabedoria." Ao que seu mestre lhe disse: "Neste caso, deixe esta separação". Isto é, devemos transcender a discriminação de sujeito e objeto.

Uma virada da cabeça ou uma expressão facial, pode nos revelar coisas e nos ajudar a compreender o Caminho. Objetividade e subjetividade são dois aspectos de uma só coisa e através delas podemos chegar ao universo ilimitado. Esta interpretação se encontra além de uma compreensão superficial e sua essência não pode ser alcançada com um pensamento superficial.

"Uma pérola resplandecente," expressa a realidade sem a nomear, é o nome do universo. Contém em si o passado sem começo, através do tempo e chegando a nós no presente. No presente este corpo e mente são "a pérola resplandecente." Um capim, uma árvore, montanhas e rios deste mundo não são eles mesmos, são a pérola resplandecente.

Apesar do monge parecer estar ainda ligado a uma consciência inferior ao indagar, "Como devemos interpretar isto?", na verdade este estado já é a manifestação da grande função, que é o grande Dharma. Para que haja uma onda de um metro, é necessário que haja um metro de água. O que ocorre então é que uma pérola de dez metros pode se tornar um resplandecer de dez metros.

A resposta de Gensha, " O universo inteiro é uma pérola resplandecente, o que haveria para compreender ou interpretar?" é a ocasião em ocorre a transmissão de um buddha para outro, a ocasião em que Gensha se torna Gensha. Mesmo que tentemos nos livrar disto, não existe lugar para onde possamos ir. 

Não podemos de forma alguma estar fora do universo, que nada mais é que a pérola resplandecente. Mesmo que a pessoa ache que consegue escapar por um pouco, mesmo este pouco está inserido dentro do tempo, que nada mais é que a pérola resplandecente.

No dia seguinte, Gensha testou o monge, repetindo a pergunta original que o mesmo lhe havia feito. Primeiramente ele havia somente se defendido, aqui ele está já testando afirmativamente a compreensão do monge. É um método oposto ao primeiro encontro, mas mesmo aqui ele está cheio de carinho e de amor. Mas a resposta do monge foi um simples arremedo da maravilhosa resposta de Gensha, quando disse "O que há para compreender?" A resposta do monge estava baseada na consciência comum, estava só repetindo Gensha, como um papagaio, enquanto que a resposta de Gensha tinha aquele frescor da experiência original de Buddha. Para realmente compreendermos isto, devemos refletir: "O que podemos obter através de nossa compreensão?" Há várias coisas que são ditas, mas como tudo que é dito, é apenas provisório, e não se compara à experiência original.

Gensha comentou da seguinte forma a resposta do monge: "Agora já podes ter consciência que mesmo na Caverna dos Demônios da Montanha Obscura, a liberdade completa está funcionando". Isto é como a relação entre o sol e a lua: nenhum dos dois trocou de lugar com o outro em momento algum. O sol sempre se levantou como sol, e a lua como lua. Em outras palavras, apesar de dezembro ser a estação quente, nossa natureza original não é quente. Desta forma, não podemos apreender onde começa ou acaba a pérola resplandecente. A única coisa que podemos afirmar é que o universo inteiro é uma pérola resplandecente, não duas ou três. A pérola resplandecente é o olho da verdadeira Lei e o corpo da Verdade. E nesta expressão ela é revelada. O corpo inteiro é Luz Divina e Mente Universal.

O corpo inteiro é uma pérola resplandecente e nele não há obstáculo algum a ser achado; redondo e girando sem cessar, está por toda parte. Desta forma se manifesta a virtude da pérola resplandecente e é exatamente isto que possibilita a Avalokiteshvara e a Maitreya, ouvirem os sons do mundo e perceberem suas formas verdadeiras; por esta razão também é que os buddhas de hoje e de ontem tem praticado para divulgar o verdadeiro ensinamento.

No momento certo eis que ela estará suspensa no vazio; escondida na lapela da camisa, nas mandíbulas de dragões, no cofre de reis. Esta pérola está sempre dentro de nós mesmos. Não devemos jamais cogitar de trazê-la para a superfície; deverá ela para sempre ser mantida em cofres e sob mandíbulas. Não devemos jamais usá-la à mostra. Quando estivermos bêbados, por certo haverá um amigo chegado que nos dará tal pérola, e devemos de nossa parte sem falta passá-la a nosso amigo íntimo também. Ao colocarmos tal pérola ao redor de nosso pescoço, andaremos sempre por aí como bêbados.

Deve-se a este fato que, apesar das situações estarem sempre aparentemente mudando, tudo nada mais é que a pérola resplandecente. A pérola é exatamente a experiência da pérola resplandecente. Assim podemos constatar os sons e formas da pérola. Tal a natureza da pérola, e disto não devemos ter nem sombras de dúvidas. Mesmo que algumas dúvidas possam surgir, ou se confirmarmos, negarmos, ou estivermos perplexos com sua existência, estas são apenas observações parciais, incompletas.

Não prezamos o brilho infinito da pérola resplandecente? Quem pode superar a virtude desta pérola brilhante que abarca o universo inteiro em seu brilho? Nada pode mudar o brilho desta pérola brilhante. Por esta razão não precisamos nos preocupar em cair nos variados reinos da existência.

A essência da causalidade não se detêm jamais, e a pérola está para sempre brilhando; é nosso rosto original e visão iluminada. Até o momento presente houve várias opiniões sobre o que vinha a ser esta pérola, mas eis que agora, as palavras de Gensha as esclareceram de uma vez por todas; a pérola nada mais é que nosso corpo e mente mesmos. Como seria possível duvidar que a vida e morte também deixem de ser a pérola resplandecente? Mesmo nossa perplexidade ou preocupação, nada mais é que a pérola resplandecente. Não há ação ou pensamento que exista separadamente da pérola resplandecente. Conseqüentemente, inferimos que mesmo o ir e vir na Caverna dos Demônios da Montanha Obscura, nada mais vem a ser que a própria pérola resplandecente.

Capítulo 6 do Shôbôgenzô de Dôgen Zenji (1200-1253).
Adaptado da tradução do monge Ryokyu Marcos Beltrão.


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