Ecos do Silêncio — Textos Zen


Keiseisanshoku

O Som dos Vales, a Cor das Montanhas


Existem muitos exemplos transmitidos de transmissão do incomparável Caminho do Buddha de mestre para discípulo. O que estas histórias todas nos dizem é parar praticarmos diligentemente, fazermos um esforço sincero, da melhor maneira que formos capazes. Eka, por exemplo, mostrou sua forte determinação cortando fora seu próprio braço; e Shakyamuni numa encarnação prévia mostrou sua forte determinação ao Buddha Nento, se inclinando para trás até que seu cabelo tocasse no chão e salpicando água suja em si mesmo.

Ao nos depararmos com tais exemplos, não podemos de forma alguma sermos auto-complacentes. Quando aqueles que praticam ganham a liberação, escapando dos obstáculos da ilusão e ego próprio, alcançando o desapego de seus pontos de vista limitados, suas naturezas reais, na forma de compreensão, surgem. Isto é realizado sem que de tal estejamos cientes. Realiza-se sem que o percebamos. Ninguém o sabe ou o conhece; mesmo a visão de Buddha não pode o penetrar, então muito menos ainda poderia ser reconhecido por criaturas.

Durante a Dinastia Grande Sung vivia um leigo, chamado Sotoba, também conhecido como Shisen, muito famoso como escritor. Tinha um profundo conhecimento do oceano do buddhismo e um alto nível de realização espiritual. Em certa ocasião, a caminho do Monte Ro, compreendeu a verdade buddhista ouvindo o som de um rio no vale da montanha. Compôs então o seguinte verso: 

O som do rio no vale é a sua grande língua,
As cores da montanha seu corpo puro.
De noite eu ouvi os oitenta e quatro mil hinos de glória, 
Mas como contar isto a todo mundo no dia seguinte?

Ele mostrou este poema ao Mestre Zen Joso, que reconheceu sua compreensão. Um belo dia Sotoba se encontrou com o Mestre Zen Buchin Ryogen e pediu para se tornar seu discípulo. Buchin outorgou-lhe então o manto buddhista bem como os preceitos. Sotoba envergou o manto e encetou sua prática buddhista. Mais tarde Sotoba deu de presente a Buchin um obi muito bonito, do tipo usado apenas por pessoas de alta classe social. Este presente não podia ser adquirido através de dinheiro ou de influência. As pessoas elogiavam o verso de Sotoba, bem como o presente que ele deu a seu mestre. Sua fama é ainda muito difundida e a maior parte das pessoas crê que não atingirá jamais o estágio espiritual de Sotoba. 

A prática de Sotoba fez com que ganhasse a compreensão ao ouvir o som do rio no vale, e seu exemplo é digno de ser seguido. Que lastimável que desde os tempos antigos até os modernos hajam pessoas que não possam perceber que o universo inteiro está continuamente proclamando a forma verdadeira do corpo de Buddha. Estas pessoas são forçosamente infelizes. O que podem observar ao ver uma montanha? O que ouvem ao escutar um rio no vale? Ouvem apenas um som em vez dos oitenta e quatro mil hinos de glória? Que lastimável muitos apreciarem tão somente os aspectos superficiais do som e da cor. Nem sequer conseguem apreciar e degustar a forma e voz de Buddha numa paisagem. Não tiveram jamais a oportunidade de conhecer o maravilhoso Caminho do Buddha: montanhas e rios sem cessar estão a proclamar a Lei, bem como as cores das montanhas estão a manifestar Seu corpo puro, e isto, nada mais que isto, é a vida sem limites. Se a pessoa não chegou a experimentar isto, crê que quando as montanhas aparecem elas se encontram próximas, e se estiverem ocultas, então neste caso se acham longínquas. Contudo, sua aparição ou não e sua proximidade ou distanciamento são coisas relativas — transcendem nossa discriminação. 

Desde o começo, a primavera e o outono, as montanhas e os rios não estiveram jamais separados; não nos é possível percebe-los independentemente. O tempo não pode ser separado das montanhas e dos rios. Praticantes Zen devem se dedicar a examinar e a escrutinar o verso: "É a montanha quem flui, e o rio quem senta estavelmente". Sotoba estudou o ensinamento: "Coisas inanimadas proclamam continuamente a Lei" com o Mestre Joso. Ao receber pela primeira vez este kôan, Sotoba ainda não sabia o que fazer dele. Mas na noite seguinte ao ouvir o som do rio no vale, este lhe pareceu ecoar pela montanha toda com tal força e potência que chegava até os céus.

Ao ouvir o som do rio no vale, ele atingiu a compreensão. Foi isto causado pelo som do rio no vale, o pelo ensinamento de seu mestre? Talvez que o ensinamento de Joso e o som do rio no vale estejam interligados; a água proclama a Lei com seu som — objetividade e subjetividade estão unificados. Será que é esta unificação a compreensão de Sotoba? Montanhas e rios manifestam ou não o Caminho do Buddha? Quando tua mente estiver plenamente atenta, poderás ouvir o som e ver as cores que proclamam o ensinamento de montanhas e rios.

Há muito tempo atrás o Mestre Zen Kyogen Shikan praticava na sala de meditação do Mestre Zen Dai’e. Várias vezes Dai’e perguntou a Kyogen: "Já que és uma tal autoridade nos Sutras, por favor, me explique qual era tua identidade antes que seus pais fossem sequer nascidos, e isto sem te utilizares de interpretações ou memorizares passagens dos Sutras ou comentários". Kyogen foi incapaz de achar uma resposta para tal. Ficando muito envergonhado, consultou seus livros e comentários, mas a resposta ele não a pode achar. Lamentando profundamente sua falta de compreensão queimou todos seus livros, dizendo: "Uma pintura de um bolo não pode satisfazer a fome. Não quero mais atingir a compreensão nesta vida. De agora em diante eu nada mais serei que um monge que trabalha na cozinha e que serve o arroz aos demais".

Depois disto ele passou anos trabalhando como ajudante de cozinha, levando e servindo refeições para os demais monges. Durante muito tempo se dedicou a isto, adquirindo méritos. Um dia declarou o seguinte a Dai’e: "Nada mais sou que um simplório. Durante anos procurei este Caminho e estou perfeitamente longe dele ainda agora. Ó Mestre, por favor, me diga uma palavra que me conduza ao Caminho". Dai’e lhe respondeu assim: "Nada me seria mais fácil que isto, mas se eu o fizer, vou te estragar com isto, e mais tarde lamentarias isto, passando quiçá a me odiar." 

Mais alguns anos se passaram e Kyogen se mudou para a Montanha chamada Buto, onde vivia o Mestre Nacional, Nanyu Echu. Construiu uma pequena choupana e plantou alguns pés de bambu que se tornaram seus únicos amigos. Um dia, ao varrer a entrada da choupana, acidentalmente bateu numa pedrinha que voou contra os bambus. O som da pedra contra o bambu deu-lhe a grande compreensão que tanto ele havia buscado. Ele então tomou um banho, queimou incenso e fazendo uma reverência em direcção à Montanha de Dai’e, disse, lembrando-se do diálogo com seu Mestre: "Ó Mestre honrado! Se minha tola pergunta tivesses respondido, jamais poderia eu ter alcançado tal estado. Tua compaixão profunda é sem limites e é maior ainda que aquela que os pais têm por seus filhos. Eu sinceramente agora mostro meu grande respeito e apreço". Compôs então o seguinte poema: "Naquele momento mesmo em que a pedrinha golpeou o bambu, abandonei definitivamente todo meu conhecimento prévio dos Sutras e do que vinha a ser a verdade. Com isto minha sabedoria aumenta cada vez mais, porque em minha mente nada existe para algo se apegar. O único que faço é me mover em meu próprio Caminho original e intransferível. Tudo que faço dia a dia é manifestar este intransferível e único Caminho do Buddha Original. É este Caminho livre e dinâmico. As minhas ações não deixam quaisquer pistas ou traços atrás de si; assim é o verdadeiro Caminho do Buddha. Todos os sábios no mundo todo agora já podem me chamar 'o homem do desapego." Mostrando este verso a Dai’e, este o elogiou, dizendo: "O Caminho é teu."

O Mestre Zen Reiun Shigon praticou o Caminho durante mais de trinta anos. De certa feita, a caminho de uma outra montanha mais distante, ele descansou numa pedra em uma curva da montanha. Ao longe, ele avistou um vilarejo. A primavera estava em pleno apogeu e as flores dos pessegueiros desabrochavam por toda parte. Vendo isto, subitamente ele alcançou o Caminho. Compôs então o seguinte poema:

Durante mais de trinta anos, busquei aquele que brandia a espada da compreensão;
Muitas flores caíram e botões novos desabrocharam.
Hoje vi as flores do pessegueiro completamente desabrochadas e ganhei o Caminho, 
Graças a compaixão do Grande Mestre Dai’e.

Tendo mostrado este poema a Dai’e, este lhe disse "O vínculo de amizade entre nós não pode nunca ser desfeito". Com isto Dai’e reconheceu a iluminação de Reiun e lhe outorgou o selo da transmissão correta. Para se alcançar o Caminho, necessário é chegar a se criar esta ligação profunda de amizade com alguém que tenha realizado o Caminho. Chegando a este ponto não poderemos mais estar livres de nossa compreensão. E isto não está limitado apenas para Reiun Shigon. Se as cores da montanha não fossem o corpo puro do Buddha, como poderia ele ter herdado o Caminho do Buddha de seu mestre?

Um monge perguntou ao Mestre Zen Chosa Keishin: "Como podemos chegar a nos integrar com a natureza, com as montanhas, rios e terra de forma que elas sejam nossas próprias?" Chosa respondeu assim: "Como podemos retornar às montanhas, rios e terra, ou seja à natureza?" Esta resposta nos mostra que quando não pensamos em nós mesmos como algo a mais, separados da natureza, e estamos realmente existindo em nossa própria natureza, está então perfeitamente certo dizermos que somos "montanhas, rios e a terra"

O Grande Mestre Kosho Eikaku do Monte Roya estava na linha de transmissão de Nangaku Ejo. Certo dia, Shisen, que era um conferencista dos Sutras, perguntou a Eikaku: "Como haveria qualquer possibilidade que nossa natureza original pudesse ser montanhas, rios e a terra?" Eikaku não respondeu, mas fez uma outra pergunta: "Como interpretas as montanhas, rios e a grande terra? Existe alguma diferença entre nossa puríssima natureza original e o que crês ser a condição impura das montanhas, rios e terra?" Devemos com isto compreender que a verdadeira forma das montanhas, rios e terra em seus estados originais é diferente de suas existências como meros fenómenos naturais. Se ficarmos somente estudando Sutras, não chegaremos jamais a ouvir uma tal interpretação. Em consequência do que não descobriremos jamais a verdadeira natureza das montanhas, rios e grande terra. O que é essencial que todos compreendam é que a transmissão que foi feita de Shakyamuni a Kashyapa, ou de Bodhidharma a Eka, não poderia jamais ter ocorrido se eles não fossem esclarecidos a respeito da verdadeira cor das montanhas e do verdadeiro som do rio no vale. Pessoas como Shakyamuni alcançaram a compreensão quando viram a estrela da manhã; outros buddhas acharam a verdade olhando uma montanha ou ouvindo um rio no vale. Todas estas figuras possuíam uma muito forte determinação de ver a verdade cara a cara. Devemos nós pois seguir firmes no encalço de nossos antecessores, e não ligarmos a mais mínima pelota para o status mundano ou para o lucro. Nesta remota região do globo terrestre, verdadeiros praticantes são raríssimos e mestres autênticos mais raros ainda. Aqui certamente existem certas pessoas que se tornaram monges, mas abusam deste Caminho do Buddha e o utilizam como meio para aparecer e adquirir bens e fortuna.

Que verdadeiramente lastimável gastarmos nosso precioso tempo em tais empreendimentos indignos. Ganhar a compreensão é deixar para trás este mundo do ego. Ao se encontrarem com um autêntico mestre a maioria das pessoas nem sequer pergunta, "O que vem a ser a verdade?" Shakyamuni comentava que este tipo de pessoas era digna de mais elevada dó, porque tendo produzido aquele karma horrível em vidas anteriores, não tinham ainda méritos suficientes para poderem procurar a verdade por causa da verdade. Chegam a questionar a verdade, mesmo quando confrontados com ela e não tem suficiente força para poder seguir atrás do ensinamento correto. Já que eram impotentes para compreender que o corpo e a mente se originaram na verdade, não podem nem receber e muito menos ainda manifestar a verdade.

O Caminho do Buddha tem sido transmitido por milénios, vindo de um ancestral para outro. E contudo, quando eu falo aos monges sobre esta mente que busca o Caminho, dos ancestrais, isto chega a ser como se eu estivesse falando de um sonho que ocorreu há muito tempo atrás. Que realmente lamentável que estejamos vivendo na montanha do tesouro e não cheguemos a constatar isto. Se obtivermos uma mente que busca o Caminho, tudo eventualmente se tornará a prática da compreensão, até mesmo quando estivermos no meio de situações complicadíssimas no mundo comum, de vida e morte. Mesmo tendo já desperdiçado um tempo enorme, não liguemos para tal: ainda é possível montar uma mente que busca o Caminho nesta vida mesma. Juntos com todas as criaturas, devemos estar anelantes por nos inteirarmos do verdadeiro ensinamento neste mundo bem como no próximo. Quando chegarmos a dele nos inteirar, que acreditemos no que foi constatado sem duvidarmos; logo que nos deparemos com o verdadeiro ensinamento, poderemos aceitar o Caminho do Buddha sem demoras e completarmos nossa prática juntos com todas as demais criaturas. Tendo desenvolvido tal atitude, ela se tornará a origem mesma de nossa mente que busca o Caminho. Não devemos jamais ser preguiçosos ou indolentes. 

Nosso país fica bastante longe da Índia e da China, e as pessoas aqui não tem uma atitude correta para buscar o Caminho. Achar quem queira realmente se devotar ao verdadeiro ensinamento buddhista é deveras raro. Por todo decurso de nossa história como povo, santos e sábios foram sempre inexistentes. Se tentarmos nem que seja começar a explicar esta mente que busca o Caminho, as pessoas fogem correndo, tapando os ouvidos. Porque elas não tem introspecção, apenas ressentimento. Quando se chega a possuir uma mente que busca o Caminho, não a devemos jamais, em hipótese alguma revelar a outros; tratem de mantê-la super-escondida, e nunca mas nunca a mostrem a ninguém. Porque tão poucas pessoas procuram a verdade nesta época presente, a maioria nunca pratica e não tem compreensão, e fica sequiosa de elogios por suas grandes práticas e sabedorias. Isto é chamado de "ilusão em meio à ilusão". Devemos imediatamente cortar esta mente depravada. Em nossa prática buddhista, se temos quaisquer dificuldades em compreender rápida e facilmente as coisas, isto se deve a falta de uma sincera vontade de encontrar o verdadeiro ensinamento. Cada ancestral era desperto para e transmitia esta vontade sincera; ela é a Luz Divina e a mente de Buddha.

Desde o tempo de Shakyamuni até o presente tem existido milhares de pessoas que crêem ser a prática do Caminho do Buddha querer obter status e fortuna. Mas mesmo estas pessoas equivocadas podem chegar a ganhar o Caminho do Buddha ao corrigirem suas perspectivas mentais distorcidas se tornando discípulos de um verdadeiro mestre. Equívocos por vezes ocorrem na prática do Caminho do Buddha, mas podem ser superados. Outrora haviam algumas pessoas que aprendiam com um mestre autêntico e respeitado, enquanto que outros caluniavam estes verdadeiros mestres do Dharma, nunca praticavam nada e se tornavam demónios. Hoje em dia, por outro lado, as pessoas são de tal forma apáticas, que nem estudam nem deixam de estudar. Não percebem que com esta atitude suas vidas estão sendo minadas e serão destruídas progressivamente pela cobiça, cólera e ignorância, ou seja, os três venenos. Apesar de poderem ter nascido como seres humanos, que é um nascimento difícil de ser obtido, não ligam nada para o Caminho do Buddha. É muito difícil de se desenvolver uma mente que busca o Caminho, mas quando o fizermos não devemos jamais perder tal resolução inicial. Desde o começo de nossa prática não devemos jamais procurar o Caminho do Buddha para recebermos elogios de terceiros; que cortemos fora o desejo por status e fortuna. Dediquemo-nos exclusivamente à prática do Caminho do Buddha. Não devemos esperar receber nem fama nem fortuna, nem o reconhecimento de reis ou ministros, ou obter prosperidade do Buddha. Bem verdade que tratamento especial para monges da parte de reis e de ministros já foi registrado antes, mas tais monges não buscaram jamais ou esperaram tal tratamento.

Um praticante do Caminho do Buddha não deve esperar receber honrarias ou prosperidade nem dos homens nem dos deuses, porque tais coisas acabam por nos obrigar a outras pessoas e tolher a liberdade. Imbecis ficam numa satisfação total ao anteciparem a prosperidade e vantagens que esperam receber; avaliam errado os efeitos do ensinamento buddhista e se olvidam de suas mentes que buscam o Caminho, bem como de suas resoluções originais. Se reis e ministros começarem a acreditar neste tipo de monges imbecis, estes últimos acham que realizaram completamente o Caminho do Buddha. A verdade é que, quando reis e ministros começam a acreditar na pessoa, isto é um inacreditável obstáculo à prática do Caminho. Não devemos nos esquecer de ficar profundamente envergonhados de termos quaisquer dependências que sejam de reis e ministros. Não nos rejubilemos se obtivermos suas estimas e admirações. Mesmo no tempo de Shakyamuni sábios admoestavam os idiotas que assim procediam e envileciam com isto o Caminho. Que não sigamos o exemplo daqueles que perderam suas práticas se ligando com outras filosofias, hinayanistas ou reis. A perca da prática da pessoa não é devida à superioridade das doutrinas alheias ou a quaisquer deficiências na sabedoria buddhista, mas aos monges mesmos. 

Ao chegar da Índia para a China, Bodhidharma ficou em Shorinji, no Monte Suzan, onde constatou que o Imperador Bu de Ryo não sabia o que o buddhismo era basicamente, e muito menos ainda o conhecia o Rei de Gi. Naquela época havia também duas pessoas, em tudo parecidas a Bodairushi e Kotorishi, que eram pouco melhores que cães. Devido as suas falsas reputações e intenções maliciosas, tentavam a todo custo evitar que o verdadeiro ensinamento prevalecesse por toda parte. Não desejavam ver seus próprios ensinamentos incomodados, então caluniavam aquele ensinamento que era verdadeiro. Suas intrigas tiveram um efeito deletério no mundo. Foi uma perturbação maior ainda que aquela causada por Devadatta durante a vida de Shakyamuni. Que triste que estas pessoas estivessem tão apegadas ao status mundano e à fortuna, os quais para Bodhidharma eram os perfeitos equivalentes a um excremento na beira da estrada. Existem pessoas que são assim e não porque o poder do Caminho do Buddha seja de qualquer forma fraco, pois sabemos muito bem que há cães que ladram também para pessoas boas. Que não nos preocupemos pois com estes cachorros a ladrar, e que também não fiquemos ressentidos com eles. Digamo-lhes o seguinte: "Cães! Despertem suas mentes que buscam o Caminho!" Um de nossos antecessores afirmou que aqueles que caluniam a Verdadeira Lei nada mais são que animais com a aparência de seres humanos. Contudo, mesmo entre estes "animais" alguns haverão por certo que acabarão despertando para o Caminho do Buddha. Como dizia Shakyamuni, "Evite completamente reis, príncipes, ministros, pessoas com altos cargos administrativos, pessoas destacadas socialmente, e devotos leigos". Isto é fundamental. Quanto mais monges praticarem, mais profunda será suas compreensões deste preceito. 

Dizem que em tempos idos, Indra desceu do céu para ver quem estava realmente praticando, e que naquele momento, Mara, o príncipe das trevas, procurou por todos os meios perturbar suas práticas. Isto ocorre tão somente quando praticantes não conseguem eliminar seus desejos por status e por fortuna. Se a pessoa está possuindo compaixão profunda e um desejo sincero de ajudar todas as criaturas, então este desejo de status e fortuna não pode aparecer. Este esforço que se faz na prática ajuda o Caminho do Buddha a se difundir pelo país afora. Apesar destes esforços produzirem bom karma, o mais importante é compreender e experimentar este espírito básico do Caminho do Buddha bem dentro de nós mesmos. Pessoas existem que, cegos a este ponto de vista e cheios de ressentimento, zombam do verdadeiro ensinamento. São eles como cães que ficam roendo ossos secos, ou seja, suas ações não tem qualquer significado. Santos e sábios constatam suas ações como pessoas comuns vêem um excremento en passant

A profundidade do Caminho do Buddha não pode ser sondado pelas conjecturas de um principiante. Apenas aquele que dominou o fim último e a compreensão completa do Caminho, pode saber realmente o que isto tudo significa. Devemos basear nossa prática naquela de nossos antecessores. Somente então poderemos ascender o escarpado e íngreme Caminho de Buddha e atravessar a salvo o turbulento oceano da vida. Se sinceramente tentarmos encontrar aquele Mestre correto, por fim o faremos. E quando isto tiver acontecido ele nos mostrará o Caminho em corpo e mente, em condições de prática e nas complicadas questões da vida comum, naquilo que é visto e naquilo que é invisível. O natural é se ouvir através do ouvido, mas também nos é possível "ouvir" através do órgão da visão. Ao nos encontrarmos com Buddha, veremos Buddha em nós mesmos e em outros também. Não devemos ficar estarrecidos com a aparição de um grande Buddha ou não crer que possa existir um pequeno. Todas estas diversas formas do Buddha podem ser encontradas no som do rio no vale e na cor das montanhas na primavera. Ao nos apercebermos disto, haverá então a grande proclamação dos oitenta e quatro mil hinos de glória, a liberdade completa será atingida, bem como a grande compreensão. "Ao olharmos para cima ao céu, nossa visão se estende infinitamente, como uma rocha inamovível". A respeito disto disse o Mestre Zen Nyojo "O céu infinito se preenche infinitamente".

Parar ilustrar de maneira diferente: a folhagem verde de um pinheiro na primavera ou a beleza de uma flor de crisântemo no outono são a forma real da verdade. Ao atingir um tal estágio, um mestre já pode ensinar aos homens e aos deuses; mas se tentarmos guiar as pessoas sem primeiro atingirmos a iluminação nada encontraremos senão oposição e obstáculos. Se não conhecermos a forma verdadeira do pinheiro na primavera bem como do crisântemo no outono, como podemos nos deparar com o verdadeiro significado de nossa existência? Como poderemos sem isto penetrar dentro de nosso ser original?

Se somos fisicamente ou mentalmente preguiçosos e não temos fé, devemos nos arrepender diante do Buddha e mostrarmos nossa sincera determinação pela compreensão. A virtude de sabermos nos desculpar purifica nossa mente; aumenta também nossa confiança e melhora nossa atitude durante a prática. Uma vez que esta confiança pura se manifeste, cessa a discriminação entre eu de um lado e o mundo do outro, passando a existir equanimidade bem como harmonia. A grande compaixão de Buddha começa a emergir e nossa virtude beneficia e influencia todos os seres viventes bem como os inanimados. Eis aqui uma fórmula geral que pode ser utilizada para o arrependimento:

Ó buddhas e ancestrais, que perfeitamente compreendem o que vem a ser o Caminho, tenham profunda compaixão de mim e livrem-me de todo o mau karma e más ações cometidas durante o meu passado. Removam todos os obstáculos de minha prática buddhista. A virtude do Caminho do Buddha preenche todo mundo; por favor, tenham compaixão de mim e lembre-se que absolutamente todos os buddhas e ancestrais uma vez já foram iguais a mim. Prometo me esforçar para seguir o verdadeiro Caminho, para que eu também possa me tornar um buddha.

Ao respeitarmos desta forma os buddhas nos tornamos iguais a eles, e dilui-se a diferença entre nossa determinação pelo Caminho e a deles. Para que a compaixão possa fluir por todos os lados, devemos saber onde e quando aplica-la. Ryuge disse: "Se não houve compreensão em nossas vidas passadas, que a ganhemos nesta vida então." Antes que nossos antecessores ganhassem a iluminação, eram exatamente tão limitados quanto nós mesmos; conseqüentemente, se chegarmos a atingir a compreensão seremos uma só coisa com os buddhas e ancestrais.

Se nos arrependermos sinceramente, por certo que teremos a assistência de Buddha. Que concentremos nossos pensamentos, tenhamos nossa coluna e corpo perfeitamente retos, esvaziemos com isto nossa mente, façamos uma reverência revelando todas nossas ignorâncias e maus caminhos passados. O poder do arrependimento remove todos as más ações passadas, e esta é a prática pura e correta — é a fé verdadeira manifesta em nosso corpo. Poderemos então ouvir estes oitenta e quatro mil hinos de glória provenientes do rio no vale e do corpo das montanhas. Ao nos arrependermos diante do Buddha em vez de ficarmos reclamando de nossa falta de status mundano e fortuna, o rio no vale e a cor das montanhas não estancarão jamais seus ensinamentos do Caminho do Buddha. Contudo, se o som do rio no vale e a cor das montanhas manifestarem os oitenta e quatro mil hinos de glória para você ou não, estes hinos existem mesmo assim. E não é somente durante a noite que podem ser ouvidos, diga-se de passagem. Se não tivermos uma mente adequada à prática, e estivermos sem o poder da verdade, como poderemos jamais descobrir esta unidade que existe entre o som do rio no vale, a cor das montanhas e nós mesmos?

Capítulo 21 do Shôbôgenzô de Dôgen Zenji (1200-1253).
Adaptado da tradução do monge Ryokyu Marcos Beltrão.


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