Ecos do Silêncio — Textos Zen
Thich Nhat Hanh
Nossos sentimentos desempenham um papel
muito importante por dirigirem todos os nossos pensamentos e ações. Existe em
nós um rio de sentimentos, no qual cada gota d'água é um sentimento diferente
e cada um depende de todos os outros para sua existência. Para observar esse
rio, sentamo-nos à sua margem e identificamos cada sentimento à medida que ele
vem à tona, passa por nós e desaparece.
Há três tipos de sentimentos — agradáveis, desagradáveis e neutros. Quando
temos um sentimento desagradável, podemos querer afastá-lo. O mais eficaz é
voltar à nossa respiração consciente e apenas observá-lo, identificando-o em
silêncio para nós mesmos. "Inspirando, sei que há um sentimento desagradável
em mim. Expirando, sei que há um sentimento desagradável em mim." Chamar
o sentimento pelo seu nome, "raiva", "tristeza",
"alegria" ou "felicidade", nos ajuda a identificá-lo com
clareza e reconhecê-lo em maior profundidade.
Podemos usar nossa respiração para entrar em contato com nossos sentimentos e
aceitá-los. Se nossa respiração for leve e tranqüila — resultado natural
da respiração consciente — nossa mente e nosso corpo irão lentamente se
tornando leves, tranqüilos e claros. E da mesma forma nossos sentimentos. A
observação plenamente consciente se baseia no princípio da "não-dualidade":
nosso sentimento não está separado de nós nem foi causado apenas por algo
externo a nós. Nosso sentimento é nosso eu, e temporariamente nós somos esse
sentimento. Não submergimos nesse sentimento, nem nos aterrorizamos com ele,
tampouco o rejeitamos. Nossa atitude de não nos agarrarmos aos nossos
sentimentos e de tampouco rejeitá-los é a atitude de desapego, uma parte vital
da prática da meditação.
Se encararmos nossos sentimentos desagradáveis com cuidado, afeição e não-violência,
podemos transformá-los naquele tipo de energia que é saudável e que tem a
capacidade de nos nutrir. Através da observação consciente, nossos
sentimentos desagradáveis podem ser muito esclarecedores para nós,
proporcionando-nos revelações e compreensão a respeito de nós mesmos e da
nossa sociedade.
A medicina ocidental dá ênfase demais
à cirurgia. Os médicos querem eliminar o que não for desejável. Quando temos
algum distúrbio no corpo, eles muitas vezes nos aconselham uma operação. O
mesmo parece se aplicar à psicoterapia. Os terapeutas pretendem nos ajudar a
descartar o que é indesejável e manter somente o que é desejável. Mas o que
sobra pode não ser muito. Se tentarmos nos livrar do que não queremos, podemos
nos livrar da maior parte de nós mesmos.
Em vez de agir como se pudéssemos nos desfazer de partes de nós mesmos, deveríamos
aprender a arte da transformação. Podemos transformar nossa raiva, por
exemplo, em algo mais salutar, como a compreensão. Não precisamos de cirurgia
para eliminar nossa raiva. Se nos enfurecermos com nossa raiva, teremos duas
raivas ao mesmo tempo. Devemos apenas observá-la com amor e atenção. Se
cuidarmos da nossa raiva dessa forma, sem tentar fugir dela, ela se transformará.
E uma pacificação. Se estivermos em paz em nosso íntimo, poderemos aceitar
nossa raiva. E possível tratar a depressão, a ansiedade, o medo ou qualquer
sentimento desagradável dessa mesma forma.
O primeiro passo ao lidar com os
sentimentos é reconhecer cada sentimento no instante em que surge. O meio para
isso é a plena consciência. No caso do medo, por exemplo, você recorre à
plena consciência, olha para o medo e o reconhece como medo. Você sabe que o
medo brotou de você mesmo e que a plena consciência também brotou de você
mesmo. Os dois estão em você, não em luta, mas um cuidando do outro.
O segundo passo consiste em se tornar uno como sentimento. Melhor não dizer,
"Vá embora, Medo. Não gosto de você. Você não é eu." Muito mais
eficaz é dizer, "Oi, Medo. Como é que você está hoje?" Em seguida,
você pode estimular esses seus dois aspectos, a plena consciência e o medo, a
se cumprimentarem como amigos e a se unirem. Isso pode parecer assustador, mas,
como você já sabe que você é mais do que seu medo, não é preciso se
amedrontar. Desde que sua mente esteja alerta, ela fará companhia ao seu medo.
A prática fundamental é nutrir a plena consciência com a respiração
consciente, para mantê-la alerta, cheia de vida e força. Embora no inicio sua
plena consciência possa não ser muito potente, se você a alimentar, ela se
tornará mais forte. Contanto que a sua consciência esteja plena e presente,
você não será submerso pelo medo. Na realidade, você começará a transformá-lo
no exato instante em que dentro de si der à luz a percepção.
O terceiro passo é o de acalmar o sentimento. Como a consciência plena está
cuidando bem do seu medo, ele começa a acalmar-se. "Inspirando, acalmo as
atividades do corpo e da mente." Você acalma seu sentimento só por estar
com ele, como uma mãe segurando ternamente o filhinho que chora. Ao sentir a
ternura da mãe, o neném se acalma e pára de chorar. A mãe é sua mente
alerta, nascida das profundezas da sua consciência, e ela tratará do
sentimento da dor. A mãe que segura o bebê forma uma unidade com ele. Se a mãe
estiver pensando em outras coisas, a criancinha não se acalmará. A mãe tem de
abandonar as outras coisas e apenas segurar seu filhinho. Por isso, não evite
seu sentimento. Não diga, "Você não é importante. Você é só um
sentimento." Passe a formar uma unidade com ele. Você pode dizer,
"Expirando, acalmo meu medo."
O quarto passo é largar o sentimento, soltá-lo. Graças à sua calma, você
está à vontade, mesmo em meio ao medo; e sabe que esse medo não vai crescer e
se transformar em algo esmagador. Quando você se descobre capaz de tomar conta
do seu medo, ele já está reduzido a um mínimo, tornando-se mais brando e
menos desagradável. Agora você pode sorrir para ele e deixá-lo partir, mas
por favor não pare por aqui. Acalmar e largar um sentimento são apenas curas
para os sintomas. Você agora tem a oportunidade de se aprofundar e trabalhar na
transformação da raiz do seu medo.
O quinto passo é olhar profundamente. Você examina em profundidade o seu bebê
— seu sentimento de medo — para ver o que está errado, mesmo depois que o
bebê parou de chorar, mesmo depois que o medo se foi. E impossível segurar uma
criança no colo o tempo todo. Por isso, você deve examiná-la para ver a causa
do que está errado. Com esse exame, você verá o que o ajudará a começar a
transformar o sentimento. Você perceberá, por exemplo, que seu sofrimento tem
muitas causas, internas e externas ao seu corpo. Se há algo de errado em volta
dele, se você conserta a situação, com carinho e cuidado, ele se sentirá
melhor. Ao examinar seu bebê, você verá os elementos que o estão fazendo
chorar. Ao vê-los, você saberá o que fazer e o que não fazer para
transformar o sentimento e se sentir livre.
Esse processo é semelhante ao da psicoterapia. Em companhia do paciente, o
terapeuta observa a natureza da dor. Muitas vezes, o terapeuta pode revelar
causas de sofrimento que se originam da forma pela qual o paciente encara a
vida, das opiniões que ele tem sobre si mesmo, sobre a sua cultura e o mundo em
geral. O terapeuta examina esses pontos de vista e essas opiniões com o
paciente, e juntos eles colaboram para libertá-lo daquele tipo de prisão em
que estava. No entanto, o esforço do paciente é crucial. O professor deve
trazer à luz o professor que existe dentro do aluno; e o psicoterapeuta deve
trazer à luz o psicoterapeuta que está no íntimo do seu paciente. O
"psicoterapeuta interno" do paciente poderá então trabalhar em tempo
integral de uma forma muito eficaz.
O terapeuta não trata do paciente simplesmente lhe repassando um outro conjunto
de opiniões. Ele tenta ajudar o paciente a perceber que tipos de idéias e de
crenças levaram ao seu sofrimento. Muitos pacientes querem se ver livres dos
sentimentos dolorosos, mas não querem se livrar das opiniões, dos pontos de
vista que são as verdadeiras raízes dos seus sentimentos. Portanto, o
terapeuta e o paciente têm que trabalhar juntos para ajudar o paciente a ver as
coisas como elas são. O mesmo vale para quando recorremos à plena consciência
para transformar nossos sentimentos. Depois de reconhecermos o sentimento, de
nos tornarmos unos com ele, de o acalmarmos e de o largarmos, podemos examinar
suas causas em profundidade. Elas muitas vezes se baseiam em percepções
incorretas. Assim que compreendemos as causas e a natureza dos nossos
sentimentos, eles começam a se transformar.
(Thich Nhat
Hanh. Paz a cada passo: como manter a mente desperta em seu dia-a-dia.
Consultoria de coleção de Alzira M. Cohen, tradução de Waldéa Barcellos,
prefácios de S.S. o Dalai Lama e Odete Lara. Coleção Arco do Tempo.
Rio de Janeiro: Rocco, 1993. Pág. 73-79. Para adquirir o livro, clique aqui.)