Ecos do Silêncio — Textos Zen


Ryûgin

O Rugido do Dragão


Um dia o Grande Mestre Jisai do Monte Tosu, em Joshu, recebeu uma pergunta de um monge praticante: "Gostaria de saber se uma velha árvore ressequida pode rugir como um dragão. Pode ou não pode?" O mestre replicou: "No meu Caminho do Buddha até uma caveira tem capacidade de falar sobre o grande Dharma." Quem está por fora do ensinamento buddhista gosta de dizer que uma árvore ressequida é apenas uma árvore ressequida, e que cinzas não podem ser brasas. Mas as opiniões destas pessoas não contam muito quando comparadas ao que dizem os buddhas e ancestrais. Este conceito de "árvore ressequida" só pode ser discutido por quem está por dentro do Caminho do Buddha. Pessoas que não estão dentro do Caminho do Buddha ficariam mais assustados ainda com o rugido do dragão. Pessoas comuns acham que uma árvore seca está morta e que na próxima primavera não terá novos brotos.

Buddhas e ancestrais compreendem a árvore ressequida da seguinte maneira: Mesmo que o oceano viesse a ficar privado de toda água, mesmo assim não lhe poderíamos enxergar o fundo. "Que o oceano secasse" é a mesma coisa que "a árvore secasse". A "árvore ressequida" é aquela que estará cheia de folhagem na primavera que vem. Por "ressequida" queremos dizer a continuidade da árvore. Todas as árvores nas montanhas, oceanos e no céu, são todas "ressequidas". Brotar de novo na primavera é próprio da árvore "ressequida". A forma, força, característica e natureza de uma "árvore seca" no Caminho do Buddha é a mesma da conhecida história do "poste seco". Este termo, ressequido, pode ser aplicado às árvores no vale ou às árvores no mundo dos deuses e homens; podemos chamar aquela árvore do vale de conífera, e aquela do mundo dos homens e dos deuses, de ressequida.

O Mestre Zen Sekito uma vez disse o seguinte: "Porque a raiz existe, aparecem as folhas." Este dito se refere aos buddhas e ancestrais. A raiz e as folhas são uma só coisa na realidade. Devemos estudar isto. 

Nesta "árvore seca" comprido é comprido e curto é curto. Se a árvore não for ressequida este rugido de dragão não pode ocorrer, mesmo que a árvore esteja além do rugido. "Muitas estações se sucedem mas a natureza da árvore ressequida não muda jamais". Além disto, devemos saber que o rugido do dragão está além de notas musicais, mas em si o rugido tem todos estes sons.

Quando o monge fez sua pergunta, pela primeira vez mostrou este seu desejo de saber a verdade. A resposta que ouviu de Tosu, "Mesmo uma caveira proclama a Grande Lei", resume tudo sobre o Caminho do Buddha e confirma a pergunta que lhe foi feita. A atitude de Tosu é a verdadeira atitude buddhista: aquela que coloca o bem-estar dos outros acima do nosso mesmo: mas isto é o rugido do dragão, bem como a caveira.

Uma vez um monge perguntou ao Grande Mestre Ryuto de Kyogengi: "Em que consiste o Caminho do Buddha?" O mestre retorquiu: "O rugido de um dragão numa árvore seca." O monge comentou então: "Não consigo compreender". O mestre encerrou: "São os olhos refulgentes de uma caveira". 

De outra feita, um certo monge perguntou ao Grande Mestre Sekiso: "Por favor, diga-me o que vem a ser o rugido do dragão numa árvore seca?"

"Eis que reténs uma mente que busca o prazer", assim lhe respondeu o Grande Mestre. O monge perguntou novamente: "O que então são os olhos refulgentes de uma caveira?". O mestre respondeu: "Eis que ainda reténs aquela consciência distorcida".

De outra feita, um monge perguntou ao Grande Mestre Sozan Honjaku4 : "O que vem a ser o rugido de um dragão numa árvore ressequida?" Ao que Sozan disse: "A energia vital nunca parou de fluir". "E quanto aos olhos refulgentes de uma caveira?", indagou novamente o monge. "Uma árvore ressequida nunca estanca a seiva, nunca fica seca". Mas o monge foi persistente: "Não consigo compreender. Existe alguém que o possa compreender?" "Todos, no mundo inteiro, o podem compreender", lhe respondeu Sozan. O monge perguntou: "Ainda não cheguei a uma compreensão. Poderá talvez haver alguma palavra que possa adequadamente descrever o que é o rugido de um dragão?" O mestre replicou: "Nem eu mesmo compreendo o significado das palavras". O monge não pescou o significado, e não passou pelo teste.

Todos estes diálogos usam uma forma que é tão diferente do discurso comum quanto o rugido de um dragão é de uma voz humana. "Na árvore ressequida" ou "Na caveira" não significam dentro ou fora, si mesmo ou outros; este discurso compreende o presente bem como o passado. Quando Sekiso disse ao monge que ele retinha uma mente que buscava o prazer, ele estava somente tentando mostrar uma forma mais completa do rugido do dragão, e a segunda resposta, a saber, "Eis que ainda reténs aquela mente," tentava dar-lhe um gosto da liberação. 

"A energia vital nunca estanca" de Sozan tenta expressar o que é inefável, que não pode ser expresso através de palavras. "Nunca estanca" é a mesma coisa que "o fundo do oceano não pode ser visto". Estanca infindavelmente. Quando o monge indagou se havia alguém que o pudesse compreender, Sozan lhe disse que absolutamente todos no mundo o podiam compreender. Isto é, todos são capazes de ouvir o rugido do dragão; ele existe por toda parte. Vamos um pouco mais além nisto. Deixando de lado por ora se alguém nunca tenha ouvido o rugido do dragão, consideremos onde está o rugido do dragão quando todos absolutamente o ouvem. 

O rugido do dragão é um som feito como a respiração nasal. Sozan quis dizer que apesar de não poder expressar o rugido do dragão com palavras, na verdade sua própria voz era o rugido do dragão. O monge não conseguiu alcançar isto, e conseqüentemente perdeu-se. Isto é deveras lastimável.

Estes diálogos trocados entre Kyogen, Sekiso, e Sozan no que diz respeito ao rugido do dragão nos mostram suas forças. Falando ou não, com olhos refulgentes ou com a caveira, todos estes são diferentes formas da voz do dragão, o sangue vital dos buddhas e ancestrais. Este grande fluxo sempre está se transmitindo para outros, e nunca cessa. Uma pilastra redonda fica grávida, e uma lanterna de pedra se encontra com outra.

Capítulo 25 do Shôbôgenzô de Dôgen Zenji (1200-1253).
Adaptado da tradução do monge Ryokyu Marcos Beltrão.


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