Ecos do Silêncio — Textos Zen


Sansuikyô

A Escritura das Montanhas e das Águas


Todos aqueles velhos buddhas têm seus Caminhos realizados pelos rios e também pelas montanhas. E isto porque tanto os rios quanto as montanhas ficam firmes em suas formas originais e realizam através disto suas virtudes verdadeiras. Transcendendo todo tempo, estão ativas dentro do presente eterno. Vejam que as montanhas possuem a qualidade de serem altas e vastas, e contudo isto de forma nenhuma se constitui em um obstáculo para o vento que por ali afora sopra livremente.

O monge Fuyo Dokai do Monte Taiyo disse em certa ocasião a uma congregação de monges: "O fato é que as montanhas verdes estão sempre se movendo enquanto que uma mulher de pedra concebe durante a noite."

A montanha tem uma virtude a que nada falta, ele é absoluta em si mesma: por isto mesmo, apesar dela estar firmemente estabelecida no solo, está contudo sempre se movendo. Busquemos o que vem a ser este "movimento". Apenas porque o movimento da montanha não é igualzinho aquele do ser humano, não duvidem nem por um momento que seja que não esteja de fato ocorrendo. Este "movimento" a que se referia Dokai, é a essência de todo movimento. Esclareçamos o que significa esta afirmação, "sempre se movendo". "Sempre se movendo" indigita com isto a eternidade. Este movimento mencionado aqui, "sempre," é muito mais rápido que o próprio vento, mas aqueles que estão vivendo na montanha nem notam que ela está se movendo e nem estão de forma nenhuma conscientes deste movimento. Viver na montanha é muito parecido com "Quando uma flor desabrocha, então a primavera existe por toda parte." Contudo, quem está na montanha não tem consciência deste movimento. Aqueles que não são capazes de ver esta montanha pelo menos uma vez, não podem compreender, ver ou ouvir este tipo de coisa devido a este princípio. Quem duvidar do movimento da montanha tampouco pode compreender seu próprio movimento. As pessoas ficam se movendo e andando o tempo todo, mas parece que são perfeitamente incapazes de compreender este movimento. Quando entendemos nosso próprio movimento podemos então também compreender o movimento da montanha.

Assim mesmo como as montanhas verdes nem são animadas nem inanimadas, da mesma forma somos nós também. Quando percebermos isto, não mais teremos dúvidas sobre o que é este movimento das montanhas verdes. As montanhas verdes devem ser vistas em relação ao mundo todo. Devemos pesquisar decididamente o que vem a ser o movimento das montanhas verdes bem com nosso próprio movimento — para frente e para trás. Devemos também examinar este movimento para frente e para trás que existiu antes que o céu e a terra se juntassem e que o tempo começasse.

Se este movimento viesse a se deter, então buddhas e ancestrais não poderiam mais aparecer. Se o movimento todo se tivesse detido, o Dharma do Buddha não poderia ter sido transmitido até o dia presente. Tanto o movimento adiante como o movimento para trás não se detiveram jamais e não estão em oposição um ao outro. A virtude das montanhas que fluem é exatamente este movimento. As montanhas verdes ficam estudando seus próprios movimentos, a montanha do leste analisa sua movimentação através da água. Assim é pois que se estuda a montanha. Não precisamos trocar o corpo e mente da montanha; a montanha aprende sobre si mesma como montanha. 

Não devemos falar mal das montanhas, dizendo que não se movem ou que não andam pela água afora na ponta dos pés. Se disto duvidamos, se deve indubitavelmente a nossa superficialidade. Já que nossa compreensão é de tal forma desvinculada da realidade, ficamos boquiabertos ouvindo uma tal expressão como "as montanhas fluem." "Montanhas que fluem" não é absorvido por todos, especialmente aqueles que se encontram enrolados em observações unilaterais e compreensão rasa. Quando dizemos "montanha," nós assim a chamamos por causa de sua virtude que está sempre aumentando e de sua preservação da vida. Ela se move e flui. Quando uma montanha concebe uma outra, é desta forma que o Dharma é transmitido e que buddhas e ancestrais surgem.

A visão iluminada é apenas compreendida nas montanhas, capins, nas árvores, terra, pedras, cercas e paredes. Disto não devemos duvidar nem por um só minuto que seja; e contudo isto não é movimento ou realização total. Mesmo que a montanha esteja adornada com as sete jóias preciosas ainda assim não nos é possível ver sua verdadeira forma. Mesmo que os buddhas e ancestrais pratiquem ali, a este lugar ou a este estado eles jamais ficam apegados. Mesmo que este lugar tenha a mais elevada forma de toda a virtude dos buddhas, ainda assim não revela sua verdadeira forma. Cada observação depende do ponto de vista de cada observador, e é mesmo assim parcial. Isto não é o trabalho dos buddhas e ancestrais, mas apenas uma pequena parte da observação do todo.

Este tipo de observação unilateral e estreita em geral não é permitida por Shakyamuni. Discriminar entre a mente e a natureza é algo que jamais foi feito pelos buddhas e ancestrais. Ficar por aí buscando a mente e a natureza da pessoa é uma atividade típica daquelas pessoas que não tem fé. O apego a palavras e letras positivamente não é o caminho para a liberação. É pois assim que podemos encontrar aquele estado que transcende tais pontos de vista limitados; transcender isto é literalmente, "as montanhas verdes estão sempre se movendo" e "a montanha do leste acabou de caminhar na ponta dos pés pela água afora." Temos que estudar isto em grande detalhe.

"Uma mulher de pedra concebe durante a noite." A mulher estéril dá a luz "de noite." Existem muitos tipos de pedra, uma pedra no céu e uma pedra na terra. Pessoas mundanas podem chegar a fingir prestar uma homenagem a isto, mas poucos são aqueles que na realidade conhecem qualquer coisa que seja sobre este assunto. Em primeiro lugar devemos compreender o princípio do que é conceber. Quando uma criança nasce, isto é uma transformação dos pais? Devemos analisar a idéia que se tornar pais da criança é o que constitui o nascimento, mas por outro lado também cuidadosamente devemos estudar o que é o nascimento quando a criança se torna os pais.

O Grande Mestre Ummon Kyoshin afirmou uma vez, "A montanha do leste está caminhando na ponta dos pés pela água afora." O que em essência esta realização do Caminho quer dizer é que todas montanhas são aquela "montanha do leste" e que todas estas montanhas do leste citadas estarão a andar na ponta dos pés pela água afora. É por isto mesmo que as nove grandes montanhas e o Monte Sumeru (da Índia) se realizam e ganham a prática juntamente com a compreensão. Nada mais que isto é a "montanha do leste."

Contudo, como podemos estar absolutamente certos de que Ummon transcendeu a prática e a compreensão na pele, carne, ossos e medula da montanha do leste? O fato é que hoje em dia na Dinastia Sung existem muitos grupinhos de pessoas descuidadas e desleixadas cujo número se encontra num crescendo assustador, e quem possui a verdade nada pode fazer para que isto possa ser impedido. Dizem este tipo de pessoas que a "montanha do leste que anda pelas águas afora" bem como a história da foice de Nansen se encontram por completo além do intelecto.

Este tipo de desocupados diz que o Zen é não-lógico, e as palavras dos buddhas e ancestrais são "não-lógicas." Acrescentam ainda que tão somente as palavras "que estão além da compreensão" são as verdadeiras e legítimas palavras dos buddhas e ancestrais. Assim sendo, o uso do bastão de Obaku e o grito de Rinzai se encontram por completo além da compreensão! E que isto é a grande compreensão dentro do Zen. Todas aquelas palavras e meios habilidosos das quais nossos antecessores habilidosos se utilizaram para cortar fora nossos emaranhados psicológicos são por estes "entendidos" considerados "além da compreensão."

Nada poderia ser mais equivocado que esta tolice, e certamente que esta não é a verdadeira forma de se encarar ou estudar estas coisas. Estas pessoas são de tal forma idiotas e insanos que não é bom nem menciona-los. Contudo o fato é que nos últimos duzentos ou trezentos anos houve muitos monges falsos e muitas pessoas mal intencionadas, que só tinham interesse em corromper os ensinamentos. Que verdadeiramente lastimável que o Grande Caminho dos buddhas e ancestrais esteja por toda parte perecendo. A interpretação de tais imbecis é inferior ainda aquelas oferecidas por hinayanistas e shravakas, e são ainda mais enganados que aqueles que nada praticam, ou seja, pessoas comuns. Não podem ser enquadrados nem numa categoria de leigos nem de monges, não são nem seres humanos nem deuses. São de fato mais estúpidos que animais analfabetos que aprendem o Caminho do Buddha. O que estes monges acham que é "incompreensível" é incompreensível apenas para suas mentes malévolas, e não para os buddhas e ancestrais. Não se deve tentar evitar o caminho dos buddhas e ancestrais apenas porque não se pode chegar a uma compreensão dele. Talvez que neste momento presente não sejamos capazes de compreende-lo, mas daí para dizer que é incompreensível vai uma distância enorme. Hoje em dia na Dinastia Sung na China existem muitos casos similares de uma compreensão distorcida. Testemunhei muitos destes casos com meus próprios olhos. Que triste que estejam tão inconscientes de suas cognições inadequadas; nem ao menos percebem que as palavras dos buddhas e ancestrais apenas transcendem a cognição comum. Quando eu estava na China permaneciam quietos mesmo quando eu lhes ria no meio da cara. O que eles consideravam incompreensível se devia apenas as suas mentes tão mal resolvidas. Quem foi que lhes ensinou uma coisa tão deturpada? Já que nunca possuíram um mestre que dominasse a verdade naturalmente se tornavam filhos de demônios.

Contudo, nós devemos estar absolutamente certos de que a montanha do leste andando pela água afora na ponta dos pés são os ossos e medula dos buddhas e ancestrais. Todos os tipos de água são realizados aos pés da montanha do leste. Por isto mesmo, todas as montanhas vão além das nuvens e caminham por sobre os céus. O ponto mais elevado da água são as várias montanhas. Subir para cima e depois para baixo é atravessar a água. Os dedos dos pés das variadas montanhas dançam por sobre a água e a água fica espirrando debaixo de seus pés. Este movimento é natural e a prática e a compreensão emergem disto. A água não é nem fraca nem forte, seca ou molhada, em movimento ou estagnada, fria ou quente, existente ou não-existente, ilusão ou compreensão. No estado sólido ela é mais dura que o diamante mais duro; quando derrete é mais suave que o leite mais suave.

Por esta razão pois não devemos ter a menor dúvida sobre a realização da virtude da água. Devemos agora estudar e observar a água em todos seus aspectos no universo. Não o estudo da água com esta é vista por homens e deuses, mas estudar a água vista pela água. Por certo que deve existir um método que estude a água como a água, já que existe uma prática e compreensão da água como água. Devemos realizar aquele Caminho através do qual nos encontramos conosco mesmo através de nós mesmos, e outros estudarem outros seguindo o caminho que se move livremente e transcende até a si mesmo. 

A água bem como as montanhas podem ser observadas de variadas maneiras, dependendo das circunstâncias; os deuses vêem a água como seus adornos, não simplesmente como água. Nós seres humanos já a vemos como outra coisa, a vemos como água. Para eles é um adorno, e para nós é água. Algumas pessoas vêem a água como uma flor maravilhosa e contudo não a utilizam como uma flor. Demônios vêem a água como fogo, ou pus. Já os peixes vêem na água um palácio cheio de salões maravilhosos. A água pode ser vista de muitas maneiras: como as sete jóias preciosas, florestas, cercas, a liberação pura e não maculada da natureza do Dharma, o verdadeiro corpo do homem, forma corpórea e a essência da mente, ou simplesmente como a água vista por seres humanos. Para cada ponto de vista diferente existe uma interpretação diferente. Vemos pois que o ponto de vista depende da consciência daquele que vê. Vamos investigar isto um pouco mais além. O ponto de vista depende da consciência do observador ou esta consciência acontece por se achar erradamente que um objeto tem muitos aspectos variados? 

Por esta razão mesma a prática e a compreensão não estão limitadas a apenas um ou dois tipos, mas abrangem milhares de formas da condição em que foi feita a observação e da própria natureza da compreensão. Mas observando os muitos tipos de água, vemos que a água é simplesmente água, completamente desapegada. 

Então a água não é composta de terra, água, fogo, vento, espaço, consciência etc., não é azul, amarela, vermelha, branca, preta, etc.; e não possui forma, som, cheiro, gosto, sensação, percepção etc. E contudo ela é realizada em todas estas coisas. Conseqüentemente é muito difícil se esclarecer a natureza deste mundo presente bem como todos seus palácios. A interpretação correta depende do significado interno das coisas e das condições; não depende de idéias de si mesmo ou de outros, e está muito além de uma compreensão superficial, que não vá além de meras aparências. Não devemos nos limitar a um ponto de vista estreito dos fenômenos. 

O Buddha Shakyamuni disse, "Todos os dharmas estão livres e desapegados, e não estão fixos em lugar algum." Devemos estar conscientes disto, que todos os dharmas estão livres e sem apegos; mas eles apesar disto mantêm seus estados verdadeiros. Quando seres humanos observam a água eles podem enxergar apenas um tipo de fluxo. Existem muitos tipos de fluxo, mas os seres humanos podem enxergar apenas um tipo. Por exemplo, a terra e o céu estão num estado de fluxo permanente, as curvas do rio fluem, os poços de água mais profundos fluem; acima das nuvens e no leito dos rios todas as coisas estão em fluxo.

No Monshin está escrito, "A água sobe aos céus para formar as gotas de chuva que por sua vez desce a terra para fluir em rios." Os chamados descendentes dos buddhas e ancestrais não são tão sábios quanto estas pessoas que escreveram isto, e é vergonhoso que eles não compreendam o princípio da água. O que devemos compreender aqui é que a água não está consciente de si mesma, ela está somente se manifestando na forma em que ela aparece. 

"A água sobe aos céus para constituir as gotas de chuva." Não importa qual seja a altura, a água sobe e ali produz as gotas de chuva. As gotas de chuva também podem mudar dependendo da situação; se afirmarem que existe um lugar onde a água não possa chegar, isto é apenas o ensinamento de Hinayanistas, ou o ensinamento falso de pessoas fora do Dharma do Buddha. Assim como a água penetra até mesmo dentro das chamas, penetra também dentro da mente cognitiva e dentro da discriminação, e dentro da sabedoria da natureza de buddhas.

"Desce a terra para fluir em rios." Quando a água desce para a terra ela se torna rios. Se pudermos compreender o que "rios" querem dizer, podemos então nos tornar sábios. Tolos sem observação correta crêem que a água pode somente ser encontrada em rios e em oceanos. Isto não está certo. Muito pelo contrário, são os rios e os oceanos que se acham dentro da água. Conseqüentemente a água não pode apenas ser encontrada em rios e em oceanos. Quando a água desce a terra ela toma a forma de rios e de oceanos. Assim sendo, já que a água forma rios e oceanos, não devemos estudar que não existam terras de buddhas dentro da água.

Até mesmo em uma só gota de água incontáveis terras de buddhas podem ser realizadas. E contudo não existe nenhuma água na terra de buddhas, e nem existe tampouco uma terra de buddhas na água. A água não tem qualquer relação com o passado, presente ou futuro nem com qualquer mundo em particular. E contudo o fato é que a água é realizada como a verdade absoluta. Onde vão os buddhas e ancestrais, por certo que a água vai logo atrás. Logo, os buddhas e ancestrais possuem o corpo, mente e pensamento da água. Por isto uma frase como "a água nunca flui para cima" não pode ser achada em nenhum texto buddhista. A água flui para todos os lados, para cima, para baixo, para trás e para frente. 

Está também escrito nos sutras buddhistas, "O calor sobe, enquanto que a água flui colina abaixo." O que devemos estudar é "para cima e para baixo," isto é, o estudo da subida e da descida dentro do Caminho do Buddha. Quando a água flui dizemos que geralmente isto acontece para baixo, mas não podemos afirmar que seja para baixo antes de ver para onde ela flui. Geralmente o calor sobe. Mas esta questão de subida e descida não é absoluta, assim como não podemos sempre afirmar que o céu esteja "lá em cima," ou que o inferno esteja "lá em baixo." O céu e o inferno juntos formam a existência do mundo.

Quando peixes e dragões vêem a água como um palácio, esta observação é a mesma coisa que um ser humano que está olhando para um palácio. Nenhum ser humano vai ficar achando que um palácio flui. Se alguém por outro lado dissesse ao dragão ou ao peixe que tudo está fluindo em seu mundo, eles ficariam tão surpresos quanto seres humanos quando ouvem a expressão "as montanhas fluem." Até mesmo as escadas e os pilares dos palácios deles também são feitos do mesmo material, isto é, água corrente. Calmamente devemos refletir sobre este princípio. Se não pudermos nos divorciar de pontos de vista preconcebidos, não poderemos nos divorciar tampouco do corpo e mente de pessoas comuns, nem muito menos dominar o mundo dos buddhas e ancestrais. E se isto for assim, muito menos ainda seremos capazes de dominar o mundo das pessoas comuns, que também é muito difícil de ser compreendido. Nós podemos saber o que são oceanos e rios, mas dragões e peixes não o sabem. Não creiam tolamente que simplesmente porque saibamos o que vem a ser a água, outros seres por isto também irão saber. Aqueles que estudam o Caminho do Buddha e ficam aprendendo algo sobre a água, não devem limitar seus estudos às observações feitas por seres humanos. Estudem todos os aspectos da água no Caminho do Buddha. Como devemos estudar a água observada pelos buddhas e ancestrais? Devemos averiguar se existe água ou não na compreensão dos buddhas e ancestrais!

Em todas as épocas da história as montanhas tem sido o lar e casa dos grandes sábios. Santos e sábios vivem juntos profundamente dentro das montanhas; as montanhas mesmas são seus corpos e mentes. Os santos e sábios são aqueles que realizam as montanhas. Apesar de haverem muitos sábios bem como santos vivendo pelas montanhas, quando ali se encontram estão como se estivessem sozinhos. Somente aparece a função da montanha, sem quaisquer traços que sejam da presença dos sábios e santos. Ver uma montanha daqui de baixo, e ver ela enquanto nela são duas coisas completamente diferentes. 

Quando se diz "não flui", isto é uma coisa distinta daquela observação feita por peixes e por dragões. Por isto mesmo devemos estudar o verso "as montanhas fluem" como fazem os buddhas e ancestrais, e não ficarmos espantados ou perplexos com isto. Um velho buddhas de certa feita afirmou o seguinte: "Se quisermos evitar o karma negativo não devemos falar mal da Roda do Dharma Verdadeiro do Tathagata." Este dito vai fundo até a verdade mesma.

Apesar das montanhas parecerem pertencer ao país, na realidade pertencem aqueles que as amam. Quando o senhor da montanha é amado, homens e mulheres virtuosos ali vivem. Quando santos e sábios vivem na montanha, a montanha a eles pertence, e com isto as árvores e rochedos crescem, e passarinhos e animais do local ficam viçosos. A virtude dos santos e sábios influencia todas as coisas na montanha.

Devemos estar conscientes que a natureza das montanhas é parecida com aquela dos santos e sábios. Existem inúmeros casos de imperadores que visitavam a montanha e faziam reverências ante os sábios e buscavam o conselho dos santos. Nestas ocasiões eles respeitavam estes sábios como seus mestres e os reverenciavam. Aqui costumes sociais ou status de nada valem. Não interessa quão grande seja o poder e a virtude do imperador, isto não abala nem comove os santos. Aqueles que vivem nas montanhas estão separados por completo da sociedade. De certa feita, o imperador Ko da China visitou o mestre Kosei do Monte Kodo, e se lhe aproximou de joelhos e curvou sua cabeça demonstrando assim sua humildade.

Shakyamuni abandonou o palácio de sua família e de seu pai e se retirou para as montanhas. O rei não ficou zangado com isto, e não teve ressentimentos das ações de seu filho, e nem tampouco ficou questionando a sinceridade daqueles que ensinavam o príncipe dentro das montanhas. Os doze anos de prática incessante de Shakyamuni foram realizados completamente dentro das montanhas, e sua iluminação também aconteceu dentro das montanhas. Reis de verdade nunca tentam controlar ou destruir as montanhas. Porque as montanhas não pertencem nem ao mundo dos humanos nem aos deuses. Não devemos tentar nos aproximar disto utilizando apenas nossas limitadas capacidades humanas. Se o fizermos, como seremos capazes de sondar esta questão do "fluir" ou "não fluir" das montanhas. 

Desde os tempos antigos santos e sábios têm também vivido na água. Ao viverem assim na água, alguns pegam peixes, outros pegam discípulos, e outros ainda pegam o Caminho. Esta é a velha tradição da água.

Há muito tempo atrás, o monge Tokujo repentinamente deixou seu mestre Yakusan e foi viver num barco no Rio Katei. Dentro em breve um sábio [Kassan] que ali vivia se tornou seu discípulo. Aí está um exemplo de se pegar peixes, pegar discípulos, pegar água, e pegar a si mesmo. Kassan viu a Tokujo e encontrou a Tokujo dentro de si mesmo; Tokujo podia ver a si mesmo porque ele havia encontrado consigo mesmo.

Devemos saber que não somente existe água no mundo, existe também no mundo da água um mundo dentro dele mesmo. Isto vale não somente para a água, mas para todas as demais coisas — existem mundos dentro das nuvens, dentro do vento, fogo, terra, do mundo do Dharma, de um só capim nos campos, e dentro de um bastão de prática. Onde existe um mundo existe um mundo dos buddhas e ancestrais. Estudem bem este princípio.

Logo, segue-se que a água é o palácio do verdadeiro dragão. A água não tem apenas a função de fluir: pensar assim é difamar a água. Por exemplo, escolhendo uma perspectiva diferente a água, não flui. A água permanece em sua forma própria. Se conseguirmos esclarecer este princípio da água fluir ou deixar de fluir, podemos com isto esclarecer todos os fenômenos. Existe uma montanha oculta dentro do jade precioso e dentro dos rios, do céu e das montanhas. Estudem que existe uma montanha oculta dentro das profundidades das montanhas.

Um velho buddhas disse, "As montanhas são montanhas, enquanto que a água nada mais é que água!" Estas contudo não são as montanhas costumeiras que as conhecemos. Estas são as verdadeiras montanhas dos buddhas e ancestrais; por isto mesmo, devemos estuda-las. Se procurarmos por estas montanhas podemos aprender delas. É desta forma que montanhas e águas se tornam santos e sábios.

Capítulo 62 do Shôbôgenzô de Dôgen Zenji (1200-1253).
Adaptado da tradução do monge Ryokyu Marcos Beltrão.


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