Ecos do Silêncio — Textos Zen


Tenzô Kyôkun

Instruções para o Mestre da Cozinha


Desde os tempos antigos os Mosteiros Zen têm tido os monges chiji, que sendo todos discípulos do Buddha, podem manifestar o Caminho. Dentre os monges chiji existe o monge tenzô, que está encarregado de preparar as refeições para os demais monges. Os Regulamentos para os Mosteiros Zen dizem: "Temos o monge tenzô que prepara as refeições para os demais monges."

Ninguém a não ser aos mais elevados monges Zen, completamente iluminados e assíduos praticantes, foram até hoje confiados este cargo. Se nós tivermos a prática integral do Caminho, podemos levar esta tarefa a cabo. Mas se não tivermos este tipo de mente que busca o Caminho, podemos seguramente dizer que todos os nossos esforços neste cargo finalmente não levarão a nada. Os Regulamentos para os Mosteiros Zen nos dizem que o monge tenzô deve manter viva a chama de sua busca pelo Caminho e, de vez em quando, preparar tais refeições que deliciarão os demais monges. Mestres Zen excelentes, tais como Kuei-shan ou T'ung-shan e muitos outros ancestrais foram, ao menos uma vez em suas vidas, tenzôs. Segue-se do que foi dito que o monge tenzô é por completo diferente de qualquer outro cozinheiro comum no mundo. Durante a minha permanência na China da Dinastia Sung, quando cheguei a indagar a monges veteranos sobre o cargo de monge tenzô, eles aos poucos me passaram o conhecimento do mesmo. Digamos que isto seja a nata do buddhismo e dos buddhas e ancestrais, e de grandes praticantes buddhistas, que foi passado junto com o dito cargo. Quanto ao tenzô, nós monges devemos examinar cuidadosamente os Regulamentos para os Mosteiros Zen e além disto ouvir as explicações detalhadas de monges veteranos.

Durante o curso de um dia e de uma noite, quando o almoço acabou e o monge tenzô primeiro avisa um monge tsusu e em seguida um monge kansu, prepara aquelas coisas que vão constar do cardápio para o desjejum e almoço do dia seguinte: arroz e vegetais. Uma vez que ele os tenha preparado, deve ter tido tanto cuidado como com suas pupilas do olho. O monge Zen Pao-ning Jen-yung disse: "Devemos ter o máximo cuidado com a propriedade comum de um templo, como se fosse nossa própria vista". Um monge tenzô deve lidar com a comida tão respeitosamente como se fosse assunto de reis e vitais interesses de Estado. O mesmo pode ser dito de qualquer outra comida que seja, seja ela crua ou cozida.

Em seguida, na cozinha do mosteiro, ele discute cuidadosamente a refeição do dia seguinte com os monges chiji: "Que tipo de sabor teremos?" ou "Que tipo de vegetais poderemos consumir?"; ou "Que refeição sairá amanhã?" Os Regulamentos para os Mosteiros Zen nos dizem: "Quando o monge tenzô prepara a comida para o desjejum e para o almoço, deve em primeiro lugar consultar adequadamente os monges veteranos ou chiji kusu. Os chiji são os seguintes: tsusu, kansu, fusu, ino, tenzô e sissui. Logo que for decidida a refeição, o menu será escrito no quadro negro dependurado diante do quarto do mestre do salão dos monges. Em seguida, a refeição para a manhã seguinte é preparada.

Ao lavar o arroz e examinar os vegetais, o monge tenzô deve fazê-lo de forma completa. Não deve ser negligente nestas tarefas: não deve ser negligente com uma coisa e cuidadoso com outras. Ele não deve dar a outros estas tarefas, mas fazer ele mesmo estas boas ações.

Os Regulamentos para os Mosteiros Zen dizem: "Se os seis tipos de gosto não estiverem bem resolvidos e a comida não tiver os três méritos, o monge tenzô não pode ser considerado como tendo bem servido aos demais monges da comunidade." Ao examinar o arroz, ele deve ser prudente e cuidadoso, separando o arroz e a areia minuciosamente. Então, naturalmente estará pleno dos três méritos e dos seis tipos de gosto.

O Mestre Zen Hsueh-Feng foi, de certa feita, um monge tenzô sob T'ung-shan. Um dia ele se encontrava lavando o arroz e T'ung-shan lhe disse: "O que sobra após a lavagem do arroz, arroz ou areia?" 

Ele replicou: "Lavarei tanto o arroz quanto a areia."

"Se o fizeres, temo muito que não mais haverá comida para os monges," disse T'ung-shan.
Ao ouvir tal, Hsueh-feng subitamente entornou a peneira de arroz.

T'ung-shan disse, "Te iluminarás mais tarde sob a tutela de algum outro mestre Zen."

Isto nos demonstra claramente como outros monges e mestres iluminados cuidavam pessoalmente deste trabalho e com tanto cuidado. Nós, que somos de gerações posteriores, não devemos negligenciar este trabalho de tenzô. Existe um velho ditado que diz que um monge tenzô considera trabalhar duro na cozinha o mesmo que a mente que busca o Caminho. Logo, ele mesmo deve pessoalmente checar o arroz e a areia. Os Regulamentos para os Mosteiros Zen dizem: "Ao fazer a comida, o monge tenzô deve supervisionar todas as coisas e torná-las naturalmente limpas." O monge tenzô não deve em vão jogar fora a água com a qual ele lavou o arroz. Nos velhos tempos, um saco era usado para filtrar a água na qual o arroz seria lavado. Quando o arroz e a água eram colocados numa panela de ferro, deviam ser cuidadosamente protegidos.

Vegetais devem ser preparados para o desjejum do dia seguinte, mas não o arroz e a sopa que os monges consomem no almoço. A mesa da comida e o depósito dos materiais e utensílios da cozinha devem ser colocados rigorosamente em ordem, e completamente limpos e lavados, e depois colocados em prateleiras mais altas e outros em lugares mais baixos, de acordo com suas posições corretas. Neste caso, não existe qualquer diferença que seja entre os dois. Os talheres para os vegetais, as conchas e todos os utensílios devem ser postos em ordem. O monge tenzô deve inspecionar tudo isto cuidadosamente e lidar com tudo meticulosamente.

Em seguida é preparado o almoço do dia seguinte. Em primeiro lugar, todos as impurezas do arroz devem ser cuidadosamente removidas e, em seguida, sujeira, pó e pedras. Quando o arroz e os vegetais estiverem bem limpos, um dos monges que servem a comida na cozinha do mosteiro, deve então comandar um sutra para o deus do fogão.

Então os vegetais e a sopa ou outras comidas devem ser preparadas. Comida que foi trazida pelos monges do chiji-kusu deve ser cuidadosamente preparada, quer seja em grande ou pequena quantidade, de boa ou má qualidade. O monge tenzô deve ter o maior cuidado de não reclamar da qualidade do suprimento de comida. Desde a manhã até a noite, ele deve estar em tal treinamento que não exista nenhuma diferença entre a comida e ele mesmo.

Antes da meia noite, ele deve estar atento ao que servirá para o desjejum do dia seguinte; depois que passa a meia noite já terminou de preparar a refeição. Na manhã seguinte, depois que findou o desjejum, ele limpa uma panela de ferro, cozinha o arroz e cozinha a sopa. Enquanto o arroz para o almoço fica de molho na água, o monge tenzô deve supervisioná-lo com a visão límpida do Buddha e não negligenciar sequer um grão de arroz que seja. De acordo com o ensinamento de Buddha, ele lava o arroz e o coloca numa panela de ferro e cozinha. Um velho monge dizia: "Quando cozinhamos o arroz, devemos considerar a panela de ferro como se fosse nossa própria cabeça. Quando lavamos o arroz, devemos considerar a água como se fosse nosso próprio corpo e vida." O arroz cozido deve ser colocado numa cesta no verão e numa bacia para arroz no inverno e em seguida servido. Vegetais e sopa devem ser cozinhados ao mesmo tempo em que o arroz é fervido. Ao fazê-lo, o monge tenzô deve pessoalmente observar o arroz e a sopa na cozinha. Ele tem que organizar com seus ajudantes os utensílios para a refeição. Recentemente os mosteiros Zen maiores têm também os cargos de hanju ou koju. Mas ambos estão subordinados ao monge tenzô. Antigamente não havia qualquer um deles, mas era o monge tenzô sozinho que estava encarregado da cozinha.

Ao fazer a comida, o monge tenzô não deve observá-la superficialmente ou discriminativamente. Ele deve ser tão livre que de um talo de capim ele erige um belo templo e que ele possa também dar um grande sermão sobre uma partícula de pó. No caso de fazer uma sopa simples, ele não deve desprezar esta função; no caso de fazer uma sopa mais elaborada, ele tampouco deve ficar mais alegre por que tem materiais melhores para trabalhar. Onde não existe apego à comida não existe ódio pela comida. Logo, ele deve levar a sua prática a cabo mais cerradamente, quer a comida seja boa ou ruim. Ele não deve jamais mudar de opinião com as coisas ou mudar de discurso com os outros; se o fizer, não será um verdadeiro praticante buddhista. Esforços sinceros e mente concentrada na cozinha o conduzirá à pureza e cuidado acima daqueles monges que o antecederam e que foram excelentes. Como eu gostaria de fazê-lo também! Como pode ele realizar completamente sua mente que busca o Caminho? Se alguém pode fazer sopa ruim por três centavos, o monge tenzô deve tentar fazer uma sopa excelente por três centavos também. Isto não é fácil, por que existe uma enorme diferença em habilidade entre "antigo" e "moderno", tanto como o Céu é separado da Terra. Como podemos estar a altura deles? Quando considerar isto cuidadosamente, ele certamente verá que é possível superá-los. Se ele não souber disto, é por que sua mente está perturbada, como cavalos que ficam galopando no campo, ou como macacos que ficam pulando de galho em galho. Uma vez que tenha refletido sobre sua mente perturbada e a tenha ajustado, ele se verá ajustado aos outros naturalmente. Em outras palavras, ser movido pelos outros é movê-los. Ele deve manter si mesmo e aos outros harmoniosos e limpos, não perdendo detalhes nem do Buddha e nem de si mesmo. Ele deve ser de tal forma livre que possa fazer um corpo de Buddha de dez metros com um só talo de vegetal. Com estes poderes sobrenaturais e liberdade, ele mostra o buddhismo aos monges e salva todas as criaturas iludidas. Quando já preparou comidas e as reservou, deve colocá-las no local mais adequado. Quando um tambor ou gongo é soado, ele deve fazer o zazen junto com os demais monges, ouvir os sermões do monge superior de manhã e de noite. 

Logo que tenha voltado aos seus aposentos, ele deve fechar os olhos e pensar: Quantos assentos ocupados há na sala de meditação? Quantos monges veteranos no templo ou no quarto particular? Quantos monges na enfermaria? Quantos monges idosos? quantos monges que não admitidos estão a esperar? Quantos monges estão vivendo nos quartos de hóspede no mosteiro? Se houver qualquer dúvida quanto a isto, ele deve verificá-lo, perguntando ao monges dosu ou ao monge chosu em seus quartos e ao mestre e ao monge encarregado no salão dos monges. Logo que esta dúvida for esclarecida, ele deve pensar o seguinte: cada um que come um grão de arroz deve dar a outra pessoa um outro; este grão de arroz é divisível em mais dois, três ou quatro; meio grão é algumas vezes um e outras vezes dois; duas metades se tornam um só se juntadas; quando um grão é dividido em dez partes e nove delas são dadas ou juntadas, quantos grãos sobram? Logo que os monges consumirem este bom arroz, eles irão ver o mestre Zen Tai-kuei; quando o monge tenzô [Tai-kuei] der um grão de bom arroz aos monges, ele verá um búfalo. Neste momento, o búfalo consome Tai-kuei; e Tai-kuei por sua vez domestica o búfalo. O monge tenzô deve considerar cuidadosamente se ele pode apreender esta função da mente de Buddha ou mesmo se ele pode contar um grão de arroz. Logo que ele tenha compreendido isto claramente, deve ensinar aos outros quando tiver oportunidade. Assim, ele deve se esforçar no buddhismo cada dia, lembrando a lição, mesmo que seja por um só momento. 

Quando um doador vem a um templo e oferece aos monges um almoço com suas oferendas de dinheiro, o monge tenzô deve consultar-se com outros monges chiji sobre tal. Assim é que se faz tradicionalmente nos mosteiros Zen. Esta consulta também deve ser feita sobre a distribuição de dinheiro entre os monges. Ele fica estritamente proibido de se meter em funções de outros, ou de negligenciar seus próprios deveres.
Quando ele já cozinhou o arroz ou a refeição de acordo com o ensinamento de Buddha, deve colocá-lo na mesa, usar um guardanapo quadrado, desdobrar seu pano de sentar, fazer nove reverências e então enviar a comida. Ele não deve desperdiçar o seu tempo preparando o desjejum e o almoço durante o dia todo. Estas sinceras e honestas ações em sua cozinha despertarão naturalmente a mente de Buddha dentro de si. Ao refletir sobre si mesmo, verá que estas ações levarão a uma grande felicidade.

Já faz tempo que ouvimos falar do buddhismo no Japão. Mas eu nunca ouvir de falar de ninguém que tivesse escrito ou narrado como é que se cozinha de acordo com as palavras do Buddha, muito menos ainda das boas maneiras que o monge tenzô deve ter quando envia a comida após fazer suas nove reverências. Por isto mesmo é que os japoneses acham que monges comem de qualquer maneira, como quiserem. A forma com que cozinham também é realmente lamentável. Que lástima! E porque pensam assim, perguntemo-nos? 

Durante a minha estadia no mosteiro T'ien-t'ung, um monge chamado Lu, que era nativo de Ning-po, estava encarregado do trabalho de tenzô. Um dia, depois do almoço, eu estava me dirigindo a uma das construções do Mosteiro chamado Ch'ao-jan-chai, que estava no corredor leste, quando o encontrei secando concentradamente alguns cogumelos em frente ao Salão de Buddha, com uma vara de bambu em sua mão e sem chapéu que lhe protegesse do sol inclemente. O sol batia com toda força em sua cabeça e o cimento estava queimando de quente. Respirando profusamente, dissecava os cogumelos, daqui para ali. Parecia uma coisa dolorosa de se fazer debaixo daquela canícula. Sua coluna estava curvada com a idade, suas longas sobrancelhas eram brancas como penas de garça. Eu me dirigi a ele e lhe disse: "Qual é tua idade?"

"Tenho sessenta e oito anos," foi sua resposta.

"Porque não fazes com que teus assistentes realizem estas tarefas?"

"Eles não são eu."

"De fato és uma só coisa com o buddhismo. Mas porque, fico pensando, trabalhas tão duro debaixo de tal calor insuportável?"

"Existe outro tempo para fazê-lo, a não ser agora?"

Eu não tive palavras. Mas caminhando pelo corredor afora, secretamente percebi como era importante este trabalho do tenzô.

No mês de Maio, do décimo sexto ano de Kia-ting, estava falando com um marinheiro no navio, lá em Ning-po, quando um idoso monge chegou a bordo, e perguntou aos passageiros japoneses se tinham cogumelos do tipo Cortinellus. Eu lhe respondi que sim e lhe indaguei onde morava. Ele era o monge tenzô do mosteiro de Ayuwanshan.

Ele me disse: "Eu vim de Shi-shi. Já fazem quarenta anos que deixei minha casa. Tenho sessenta e um anos de idade. Acho que já devo ter praticado em todos os mosteiros Zen que existem por aí. Ano passado, quando morei no mosteiro de Ku-kyun, podia visitar o mosteiro de Ayuwanshan. Fiquei ali também, mas desperdiçava tempo. Felizmente, fui indicado como monge tenzô ano passado, quando o angô de verão terminou. Amanhã é o dia cinco de Maio. Eu não tenho ali as comidas excelentes para que todos os monges possam apreciar amanhã. Achei que faria uma sopa de macarrão. Mas quando descobri que vocês tinham aqui este cogumelo Cortinellus, que é delicioso com o macarrão, vim logo que pude."

Eu lhe disse: "Quando foi que você saiu do Mosteiro de Ayuwanshan?"

"Depois do almoço."

"Qual a distância daqui?"

"Mais ou menos trinta quilômetros."

"Quando vais voltar?"

"Tão logo adquira aqui os já falados cogumelos Cortinellus."

"Que feliz eu fiquei de te ver aqui tão inesperadamente e de ter uma conversa contigo aqui no meu navio. Deixe-me que te sirva, mestre Zen tenzô."

"Infelizmente isto não pode ser. Sem que eu esteja lá para supervisionar as coisas e decidir sobre a comida de amanhã, tudo dá errado".

"Mas positivamente num lugar tão grande quanto o mosteiro de Ayuwanshnan haverá algum outro monge que cozinhe e que prepare as refeições. Creio que nem tudo tenha que depender de um só monge tenzô."
"Por mais velho que eu seja, este é o meu dever ali. Este é o treinamento de minha velhice. Como posso deixar para outros? Além do mais, não obtive permissão ao sair para passar a noite fora."

"Mas meu muito reverendo senhor! Porque é que você não faz zazen ou fica lendo os koans de velhos mestres? Do que adiantaria possivelmente ficar trabalhando tão duro como monge tenzô?"

Ao ouvir estas minhas observações, ele deu uma boa gargalhada e disse: "Caríssimo estrangeiro! Parece que és completamente ignorante do verdadeiro significado do treinamento buddhista."

Imediatamente envergonhadíssimo de mim mesmo e deveras surpreso com o que ele disse, eu lhe perguntei: "E o que são estas coisas, treinamento e características do buddhismo?"

"Isto mesmo que acabas de perguntar é a verdadeira característica do buddhismo, se realmente compreenderes tua pergunta." Assim ele respondeu. Naquele momento eu não pude compreendê-lo. Vendo que nada podia entender, ele disse: "Se não me puderes compreender, que venhas ao mosteiro de Ayuwanshan algum dia. Então poderemos conversar calmamente sobre o que vem a ser o buddhismo novamente." Ao dizer isto se levantou e partiu falando: "Está ficando escuro. Devo me apressar para retornar."

Em julho do mesmo ano, quando eu estava no mosteiro de T'ien-t'ung, ele veio me visitar e disse: "Eu vou deixar o cargo de tenzô e voltar para casa depois do angô de verão. Mas como ouvi dizer que estavas por aqui, resolvi vir te fazer uma visita. Estava impaciente para te ver novamente."

Que feliz fiquei então! Enquanto conversava com ele sobre todo tipo de coisas, a conversa de repente se voltou para o que vinha a ser o verdadeiro treinamento e das características do buddhismo que havíamos começado a discutir no navio. Ele disse: "Aquele que estuda letras, deve ser capaz de compreender o que originalmente elas querem dizer. De forma similar, aquele que pratica o buddhismo deve compreender o verdadeiro significado deste treinamento."

Eu perguntei: "O que são letras?"

"Um, dois, três, quatro, cinco," foi a sua resposta.

"O que vem a ser a disciplina buddhista?"

"Todas as coisas são a manifestação da verdade e todas as coisas nada escondem."

Assim, ficamos a conversar sobre todo tipo de assuntos, entretanto, neste momento eu não continuarei comentando mais sobre o que falamos. Devo dizer que lhe devo completamente o fato que pude compreender até algum ponto, o que vinham a ser letras e disciplinas do buddhismo. Quando contei ao meu falecido mestre Myozen sobre esta excelente conversa que tive, ele se alegrou do fundo do coração.
Mais tarde me familiarizei com o verso do Mestre Zen Hsueh-t'ou. Respondendo ao seu monge Chung, Hsueh-t'ou disse:

Um e este são todos letras.
O universo de nada depende para sua sustentação.
A noite avança, o luar cai sobre as águas, 
E ali podemos encontrar muitas belas jóias.

Este seu verso achei que expressava exatamente a mesma coisa que o monge tenzô estava tentando dizer no ano anterior. O monge tenzô era um verdadeiro buddhista.

Por aí se vê que minhas letras passadas eram um, dois, três, quatro e cinco; enquanto que minhas letras presentes são seis, sete, oito, nove e dez. Com isto, praticantes buddhistas poderão ver o que vem a ser o buddhismo em letras. Se não forem capazes disso, serão estragados por muitos tipos impuros de buddhismo e não poderão realmente exercer suas habilidades ao preparar refeições para monges.
Eu realmente ouvi e testemunhei muitos excelentes exemplos antigos e modernos deste trabalho do tenzô. Agora percebi o que realmente vem a ser o verdadeiro treinamento do buddhismo que o monge tenzô do mosteiro de Ayuwanshan me mostrou. Ambos me mostraram o âmago do caminho, poderíamos dizer.
Até o monge que cuida do mosteiro deve ter a mesma perspectiva mental que do monge tenzô. Os "Regulamentos do Mosteiro Zen" dizem: "O desjejum e o almoço devem ser tão bem servidos quanto possível. O mesmo deve ser dito em relação ao ato de comer, de beber e de vestir, e às roupas de cama e remédios. O Buddha Shakyamuni tirou vinte anos de sua longevidade de 100 e os deu para gerações posteriores como presente. O mérito de luz de sua testa é sem limites para nós, para que cheguemos a gastar nem que seja um centésimo disto." Ou, "Um monge tenzô de nada deve querer se lembrar, exceto de servir aos monges, completamente livre de qualquer preocupação com a pobreza. Se não estiver apegado aos efeitos de suas ações, naturalmente ele se verá abençoado com a felicidade eterna. Na minha opinião, esta ação devocional com relação aos monges é vital para o encarregado de um mosteiro, também.

Ao preparar a comida, um monge tenzô deve ser sincero e respeitoso para com as mesmas, quer elas sejam refinadas ou não. Atentem para o fato de que antigamente uma mulher ofereceu ao Buddha Shakyamuni uma tigela de água com a qual ela havia lavado o arroz. Por causa desta sua boa ação, foi predito que ela voltaria como um pratyeka-buddha em sua existência vindoura. E o Rei Ashoka respeitosamente ofereceu aos monges metade de uma manga como sua última boa ação. Isto fez com que ele estivesse livre do sofrimento no momento de sua morte. Ao tentar se formar uma ligação com o Buddha Shakyamuni, uma oferenda pequena mas sincera trará melhores resultados que outras vultosas mas insinceras.

Ao fazer a comida, o monge tenzô nunca acha que uma bela sopa seja superior a uma simples. Ao escolher produtos da horta, ele deve ser sério, sincero e de mente tão pura quanto ao fazer uma sopa refinada. Os monges que estejam já no oceano puro do buddhismo não fazem qualquer diferença que seja entre as duas. Ali nada mais existe senão o gosto do buddhismo. Menos ainda deve um monge tenzô fazer qualquer discriminação que seja, por que ele deve levantar o caminho do Buddha. Um velho mestre disse: "Monges não fazem discriminações quanto às suas comidas, da mesma forma em que um fogão não recusa nenhum tipo de lenha que seja." Lembrem-se desta palavras. Um monge tenzô deve estar bem lembrado que vegetais comuns podem levar a este caminho do Buddha. Ele não deve diminuir estas coisas todas. Um líder de seres humanos e celestes deve dar aos outros felicidade com vegetais. Nem deve o monge tenzô considerar seus méritos ou falta de mérito, nem deles nem de outros monges, nem de seus ideais. Ele não sabe o que ele é realmente. Menos ainda pode ele saber o que são os outros na realidade. É completamente errado que ele fique a julgar os outros com suas ideais preconcebidos. Quer sejam veteranos ou novatos, cultos ou ignorantes, os monges, conquanto possam ter variadas formas, são todos os tesouros do buddhismo. A coisa errada de ontem pode ser a coisa correta de hoje. Ninguém pode dizer o que é "sagrado" e o que é "profano". Os Regulamentos para os Mosteiros Zen dizem: "Quer sejam sagrados ou comuns, todos os monges são agraciados com uma tal função que penetram o universo inteiro." O monge tenzô deve estar livre de discriminação moral a respeito de se encontrarem corretos ou não. Suas aspirações pelo Caminho são tal como são, o treinamento que se identifica com a iluminação. Tomem um passo em falso e vocês se acharão realmente longe do buddhismo, apesar de este poder estar bem perto. O âmago do Caminho mostrado pelos velhos mestres reside em tal prática incessante. Com isto, o monge tenzô também vai atingir o cerne do Caminho. Os regulamentos para praticantes Zen que foram recomendados pelo grande Patriarca Pai-chang nunca nos enganarão.

Quando retornei ao Japão, permaneci no templo de Kennin-ji durante dois ou três anos e vi, muito para o meu desgosto, que o tenzô ali era apenas nominal, não de verdade, porque eles tinham este cargo e ignoravam que ele era a verdade buddhista. Como poderia então o monge tenzô ganhar o Caminho? Ele não havia ainda visto um líder excelente e em vão desperdiçava seu tempo destruindo seu treinamento buddhista. Ao preparar o desjejum e o almoço, não supervisionava estas coisas pessoalmente, deixando todos os seus deveres, quer fossem grandes ou pequenos, para empregados que mais pareciam escravos, que não tinham nem pensamento nem busca do Caminho. Ele nunca ia ver se eles tentavam fazer as coisas corretamente, achando que isto era tão vergonhoso e tão baixo quanto ir procurar uma mulher na vizinhança. Apenas ficava deitado num pequeno quarto e conversava com os outros, ou lia sutras ou cantava os nomes dos buddhas. Ele nunca se aproximaria de uma panela de ferro e isto durante um longo tempo. Não compraria utensílios ou cuidaria da quantidade ou sabor da comida. Como poderia ele conciliar seus deveres com os sermões buddhistas? Menos ainda estava ele consciente que deveria queimar incenso e fazer nove reverências para o salão de meditação antes que enviasse a comida para o desjejum e o almoço. Durante as refeições eu tentei contar estas coisas para o monge noviço, mas de nada adiantou. O fato é que ele pode não ter despertado para a mente do Caminho, mas pode ao menos agir corretamente como monge tenzô logo depois que vir uma pessoa iluminada. Mesmo que ele não tenha jamais visto uma tal pessoa, mesmo assim pode muito bem seguir o Caminho se ao menos despertar para a mente que O busca profundamente. Mas se ele não tem nenhuma destas duas coisas, o que existe que se possa aproveitar?

Nos mosteiros da China Grande Sung, monges chiji e monges choshu, cuja duração de cargos era de um ano, eram esforçados em seus trabalhos e tinham capacidade de salvar os outros com três tipos de mente:

  1. ajudar a si mesmo e aos outros;
  2. criar uma regra nobre fazendo progredir o buddhismo no mosteiro Zen;
  3. tentar se igualar a pessoas excelentes, quer sejam de tempos antigos ou modernos, e respeitá-las e segui-las.

O que eu posso acrescentar a isto é o seguinte: o tolo é aquele que acha que seu treinamento é como o dos outros; o sábio aquele que acha que tem adequar sua forma de treinar àquelas de grandes praticantes.

Um velho sábio disse:

Já se passaram dois terços de sua vida,
E sua mente ainda não se refinou,
Ansiosa demais para obter lucro comum, humano,
Para prestar atenção às minhas palavras de advertência.

Deste verso podemos deduzir que sem verdadeiros líderes, monges não podem se livrar de preocupações mundanas. Ele fica sendo, infelizmente, justamente como aquele tolo filho de um homem rico, como nos diz o Sutra do Lótus, que tendo uma fortuna que lhe seria passada por seu pai, abandona seu lar e joga tudo fora. O monge tenzô não pode seguir este exemplo execrável.

Agora que estou pensado de antigos e grandes monges tenzô, vejo que suas virtudes naturalmente se identificam com seus cargos. Foi quando exercia o cargo de tenzô que Tai-kuei se iluminou e que T'ung-shan mostrou a um monge o Buddha com as palavras "três quilos de linho." Nada nos é mais valioso que a iluminação no Caminho; não existe momento nenhum que seja mais precioso que a iluminação.

Agora deixem que eu cite alguns velhos exemplos daqueles que eram esforçados em suas práticas e iluminação do Caminho. Quando uma certa pessoa deu ao Buddha um punhado de areia que era seu tesouro, ela renasceu em sua seguinte existência como o Rei Ashoka; se a pessoa fizer uma estátua de Buddha e a reverenciar, poderá nascer bonita em toda a existência que renascer. Voltemos ao caso com o cargo do tenzô. Se a mentalidade e ações excelentes dos monges tenzô forem transmitidas até nós, seus méritos e caminhos nunca deixarão de aparecer.

Quando, alem do monge tenzô, todos os outros monges chiji ou monges choshu perfizerem seus deveres, devem estar de posse de três tipos de mente: gratidão, amor paterno e mente sem preconceito.
"Gratidão" é aquela mentalidade ligada à alegria. Suponham que o monge tenzô estivesse no mundo celeste: ele teria absorvido uma tal grande felicidade que não teria tempo de despertar para a mente que busca o Caminho ou de se treinar no buddhismo. Mesmo assim teria ele tempo de preparar uma dieta para os Três Tesouros. Nada é mais valioso que os Três Tesouros, o mérito disto está além daquele de Shakra Devanam Indra, a figura mais elevada no mundo do desejo, ou o monarca universal, o humano de hierarquia mais elevada no mundo humano. Os Regulamentos para os Mosteiros Zen dizem: "Monges são os seres mais nobres e mais excelentes no mundo, pois que eles se acham libertos da ilusão, e possuem uma mente que é pura e sem artifícios." Agora felizmente ele renasce no mundo humano e também prepara uma comida para os três valiosos tesouros. Isto é uma ligação maravilhosa com eles. Nada existe que seja mais maravilhoso que isto! Ele deve considerar que se renascer nos mundos maus dos infernos, no mundo dos demônios famintos, dos seres amigos de sangue, asura, ou nos oito mundos onde mal se pode ouvir falar do buddhismo, ele não poderá preparar uma comida pura para os Três Tesouros em pessoa, conquanto tente, por que seu corpo e mente estariam sujeitos ao sofrimento. Felizmente ele nesta vida está abençoado com uma boa oportunidade de servir aos Três Tesouros. Que feliz esta vida! Que felicidade ele possui! Esta é de fato uma ligação eterna com o buddhismo. E o seu mérito é incorruptível. Como gostaria que ele preparasse uma comida pura, que incluísse centenas de milhares de vidas em uma só hora ou num só dia. Isto ocorre porque espero que ele obtenha o resultado de Buddha em muitas vidas vindouras. Um apanhado tão firme assim da verdade vem a ser gratidão. Suponha que ele seja o monarca universal; mesmo assim ele seria um rei perfeitamente inútil, a menos que fizesse uma comida pura para os Três Tesouros. Seu corpo apenas desaparecerá como se fosse espuma ou uma bolha, ou chamas.

"Amor paterno" é o coração dos pais. Assim como pais amam seus filhos, assim o monge tenzô deve se lembrar dos Três Tesouros. Pais amam completamente seus filhos e os criam, irrespectivo do sofrimento ou de suas pobrezas. Ninguém há que possa chegar perto deste tipo de mente elevada como a dos pais. Apenas depois que nós nos tornamos pais é que podemos perceber. Todos eles, sejam pobres ou ricos, apenas desejam que seus filhos cresçam tão logo quanto possível e também devotadamente os protegem de ataques do calor e do frio. Não poderia haver uma mente que fosse mais bondosa que esta. Ninguém há que compreenda perfeitamente este tipo de mente, a menos que seja aqueles que criam e usam este tipo de mente. Portanto, o monge tenzô deve estimar sua água ou grãos tão caramente quanto um pai ama seus filhos.

O Buddha Shakyamuni tirou vinte anos de sua longevidade de cem e deu este tempo para nós, na era do buddhismo degenerado, como presente. Não foi certamente por que ele estivesse ansioso por obter bons resultados ou de ganhar riquezas, mas por que queria dar a todas as criaturas amor paterno.

"Mente sem preconceito" é manter nossa mente tão imóvel como uma montanha ou mantê-la tão ampla quanto um oceano. Em outras palavras, isto é uma mente imparcial. O monge tenzô não deve fazer diferença entre ryo e kin, ou quilo e grama. Nem deve ele ser envolvido por vozes bonitas ou cor que não seja bonita. Ele pode perceber a mudança das quatro estações igualmente e não faz qualquer diferença que seja entre kin e ryo

Sem estudar letras o monge tenzô do mosteiro de Chia-shan não poderia ter dado uma risada de repente para o monge veterano Fu durante seu sermão e mais tarde lhe revelado o Caminho. Sem escrever as letras, o mestre Zen Tai-kuei não poderia ter soprado três vezes numa cinza fria. Sem perceber isto, o mestre Zen T'ung-shan não poderia ter mostrado a seu monge o Buddha com as palavras "três quilos de linho." O monge tenzô deve perceber que todos estes excelentes mestres Zen estudaram esta mente sem preconceito durante suas ações diárias e mostraram o significado primordial do buddhismo livremente e em voz alta: eles se iluminaram e conduziram muitos à iluminação.

Quer sejam monge chefe, monge chiji, monge choshu ou qualquer outro tipo de monges, todos eles devem se lembrar dos três tipos de mente.

Durante a primavera do terceiro ano de Katei escrevi eu este livro no templo de Koshyo-ji para os praticantes Zen das gerações vindouras.

Dôgen Zenji (1200-1253). Adaptado da
tradução do monge Ryokyu Marcos Beltrão.


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