Ecos do Silêncio — Textos Zen


Mondos e Kôans

Transmitindo o Intransmissível


Parte II - Transmissões na China

29. De Bodhidharma para Hui-k'o

Hui-k'o tinha estudado as duas filosofias chinesas, o confucionismo e o taoísmo, mas seu interesse real era pelo Dharma de Buddha. Tornou-se monge, passou a estudar os sutras e a meditar rigorosamente. Com a permissão do seu abade, ele viajou ao monastério Shao-lin, onde estava o mestre Bodhidharma. Hui-k'o só foi admitido por Bodhidharma após cortar o próprio braço, como prova de fé inabalável. Oito anos depois, ele declarou:

Hui-k'o: Finalmente, coloquei fim às condições.
Bodhidharma: Tal estado deve ser equivalente à morte.
Hui-k'o: Não tem nada tem a ver com a morte.
Bodhidharma: Pode me provar isso?
Hui-k'o: Estou claramente e continuamente desperto. Absolutamente, não há palavras adequadas para expressar esta claridade!
Bodhidharma: Esteja certo de que tal claridade é a própria essência da mente de todos os buddhas.

Com esta transmissão, Hui-k'o tornou-se o segundo ancestral do Ch'an, o Zen chinês.


30. De Hui-k'o para Seng-ts'an

Sabe-se muito pouco sobre o passado de Sent-ts'an. Afetado pela lepra, ele procurou o mestre Hui-k'o para conseguir se curar.

Seng-ts'an: Meu corpo está manifestando a lepra. Eu suplico, venerável sábio, que você purifique o meu grande karma negativo.
Hui-k'o: Traga-me o seu karma e irei purificá-lo instantaneamente.
Seng-ts'an: Mesmo procurando-o, simplesmente não posso encontrar esse karma.
Hui-k'o: Seu karma sempre foi puro. Aproxime-se de mim com grande sinceridade, você desenvolveu as Três Jóias: o Buddha é a pureza original da mente; o ensinamento essencial do Dharma é a pureza original da mente; e a Sangha, que realiza e promove a verdade da não-dualidade, também é a pureza original da mente.

Seng-ts'an percebeu a pureza de sua mente, curou-se instantaneamente e realizou o caminho.


31. De Seng-ts'an para Tao-hsin

Com apenas 13 anos de idade, Tao-hsin recebeu a transmissão do mestre Seng-ts'an:

Tao-hsin: Por favor, mestre sagrado, demonstre-me sua grande compaixão, apontando diretamente o ensinamento libertador sobre o vazio.
Seng-ts'an: Quem ou o que está te aprisionando?
Tao-hsin: Ninguém nem nada me aprisiona.
Seng-ts'an: Então, por que você considera o ensinamento do vazio como um ensinamento libertador? Por que você procura a libertação no lugar original? Já que ninguém está realmente preso, como a libertação pode ser demonstrada?

Subitamente, o jovem Tao-hsin realizou a liberação.


32. De Tao-hsin para Hung-jen

Um velho peregrino foi até o mestre Tao-hsin para pedir a transmissão, e o mestre respondeu:

Você é tão venerável em idade que, se eu te transmitisse o Dharma agora, você não poderia ensiná-lo por muito tempo. Por favor, volte mais tarde, vou esperá-lo.

O velho peregrino partiu e encontrou uma jovem, muito religiosa, que estava lavando roupa em um rio. O peregrino perguntou a ela sobre alojamento, e a jovem foi consultar seus pais. Ao retornar, ela encontrou o peregrino morto e, meses depois, descobriu que estava milagrosamente grávida.

Ninguém acreditou no que tinha acontecido. Quando seu filho nasceu, ela tentou abandoná-lo no rio, mas uma semana depois, ele ainda continuava lá, saudável e radiante. Passaram a viver como mendigos, sem lar e sem família; o menino passou a ser conhecido como sem nome.

Quando tinha 7 anos de idade, ele foi encontrado pelo mestre Tao-hsin.

Tao-hsin: Qual é o seu nome?
Sem nome: Eu sou essência, não nome.
Tao-hsin: Essa essência que você é, possui nome?
Sem nome: Despertar.
Tao-hsin: Despertar é o seu nome?
Sem nome: Eu sou sem nome.

Depois desta transmissão, o menino sem nome passou a ser chamado de Hung-jen.


33. De Hung-jen para Hui-neng

Desde pequeno, Hui-neng trabalhava como lenhador, para sustentar a si mesmo e à sua mãe doente. Certa vez, quando estava vendendo lenha na cidade, ouviu um homem recitando um livro em voz alta. Hui-neng ficou muito impressionado com aquelas palavras e foi perguntar àquele homem:

Hui-neng: Que livro é esse?
Homem: É um sutra.
Hui-neng: Que sutra?
Homem: O Sutra do Diamante.
Hui-neng: Onde o conseguiu, e por que você está o recitando?
Homem: Consegui este texto no monastério Tung-ch'an, no distrito Huang-mei de Ch'i-chou. O abade deste monastério é Hung-jen, o quinto mestre, que tem cerca de mil discípulos. Quando fui prestar reverência ao ele, falou-me deste sutra. O mestre costuma encorajar tanto os leigos quantos os monges a lerem este sutra, para que realizem a natureza da mente e alcancem diretamente a iluminação.
Hui-neng: Gostaria de conhecer este mestre.
Homem: Quer mesmo ir ao monastério Tung-ch'an? Fica bem longe...
Hui-neng: Por mais longe que seja, gostaria de ir.
Homem: Então, vá até ele!
Hui-neng: Infelizmente não posso, preciso cuidar de minha velha mãe.
Homem: Isso não é problema, pegue estas dez moedas e leve para ela. É o bastante para o sustento dela.

Muito comovido, Hui-neng levou as moedas à sua mãe, despediu-se e foi para a província de Huang-mei, no norte, onde chegou depois de um mês de caminhada. Ao encontrar o mestre Hung-jen, ele lhe disse:

Hui-neng: Sou um lenhador da província Hsin-chou de Kuang-tung. Viajei desde longe para prestar reverência ao senhor e para pedir apenas a iluminação.
Hung-jen: Você é nativo de Kuang-tung, um bárbaro? Como espera se tornar um buddha?
Hui-neng: Apesar de existirem homens do norte e homens do sul, norte e sul não fazem diferença na natureza búddhica. Um bárbaro é fisicamente diferente do senhor, mas não em natureza búddhica.

Hui-neng foi admitido no monastério como cozinheiro. Oito meses depois, o mestre pediu aos monges para que escrevessem um gatha, um breve poema sobre o despertar. O único a escrever o poema foi Sheng-hsiu, o mais estudioso dos monges. Muito preocupado, ele hesitou por quatro dias, mas finalmente escreveu o seu poema, em uma das paredes do monastério:

O corpo é a árvore da iluminação,
A mente é um espelho brilhante
Que devemos limpar continuamente
Para que a poeira não grude.

O mestre Hung-jen descobriu a autoria do poema e pediu a Sheng-hsiu para que escrevesse outro. Hui-neng, que estava trabalhando na cozinha, ouviu um jovem noviço recitar aqueles versos e perguntou do que se tratava. Então, Hui-neng decidiu compor um poema também; como não sabia ler ou escrever, pediu ao noviço para que o anotasse na parede:

O corpo não é uma árvore,
A mente não é um espelho;
Já que tudo é vazio,
Como a poeira pode grudar?

Depois de ler o poema, o mestre Hung-jen apagou-o com a sandália e, durante a noite, foi à cozinha, onde estava Hui-neng.

Hung-jen: O arroz já está branco?
Hui-neng: Sim, perfeitamente branco! Mas as cascas ainda não foram peneiradas.

Com sua bengala, o mestre deu três batidas em um pilão de pedra, o que significava que Hui-neng deveria ir aos seus aposentos depois de três horas. Hui-neng respondeu, sacudindo três vezes a sua peneira.

Então, três horas depois, o mestre recitou o Sutra do Diamante para Hui-neng. Ao ouvir o trecho

... deve-se usar a mente de tal modo que ela esteja livre de todo apego...

Hui-neng subitamente despertou. O mestre Hung-jen deu a ele o pote e o manto, símbolos da transmissão, e pediu para que se retirasse do monastério, temendo a inveja dos outros monges. Hui-neng partiu para as montanhas do sul da China, onde viveu por 15 anos como caçador e só então se tornou monge, atraindo muitos discípulos.


34. De Hui-neng para Ch'ing-yüan

Ch'ing-yüan era monge desde pequeno, mas continuava cheio de dúvidas. Ao encontrar o mestre Hui-neng, perguntou:

Ch'ing-yüan: O que devo fazer para não ficar confuso nos estágios do desenvolvimento espiritual?
Hui-neng: Qual estágio você já atingiu?
Ch'ing-yüan: Eu ainda nem comecei a refletir sobre as quatro verdades nobres!
Hui-neng: Qual estágio você vai definitivamente atingir?

Com esta pergunta, Ch'ing-yüan tem suas dúvidas dissipadas e responde, sorridente:

Se eu nunca começar nem mesmo os estágios iniciais, como poderei atingir algum estágio? Que estágios podem haver?

Sem confusão, sem estágios, Ch'ing-yüan realizou a sabedoria.


35. De Ch'ing-yüan para Shih-t'ou

Quando era criança, Shih-t'ou mostrava-se totalmente contra os sacrifícios de animais, praticados pelas tribos de caçadores de sua região. Aos 13 anos, ele se tornou noviço. Pouco tempo depois, o mestre Hui-neng faleceu, e Shi-t'ou fez retiros solitários por períodos prolongados. A encontrá-lo, o mestre Ch'ing-yüan perguntou:

Ch'ing-yüan: De onde você é?
Shih-t'ou: Do seu monastério original.
Ch'ing-yüan [levantando seu cetro]: Isto existe no monastério?
Shih-t'ou: Não, em nenhum monastério, nem mesmo sa terra sagrada da Índia.
Ch'ing-yüan: Desde quando você vai à Índia?
Shih-t'ou: Apenas se eu fosse à Índia que isso estaria lá.
Ch'ing-yüan: Declarações ultrajantes não são o bastante, diga mais.
Shih-t'ou: Não conte comigo para que eu diga tudo. Você também deve falar.
Ch'ing-yüan Não estou me recusando a falar. Estou apenas achando que, depois de mim, ninguém realmente despertará.
Shih-t'ou: Os mestres futuros certamente despertarão, mas eles podem ser incapazes de expressar isso.

Então, o mestre Ch'ing-t'ou bateu com cetro em Shih-t'ou, completando a transmissão. Os mestres futuros também puderam despertar.


36. De Shih-t'ou para Yao-shan

Yao-shan tornou-se monge aos 16 anos, passando a estudar os sutras e a seguir rigorosamente as regras monásticas. Mesmo assim, ainda estava com muitas dúvidas sobre a essência da sua mente, e foi conversar com o mestre Shih-t'ou.

Yao-shan: Eu compreendi os doze sutras básicos que esclarecem todas as manifestações, mas quero receber a transmissão radical em que o mestre aponta para a mente, de modo direto, e o discípulo realiza a sua natureza, tornando-se buddha subitamente.
Shih-t'ou: Nenhum entendimento passo a passo funcionará, nem a assimilação súbita, nem mesmo uma combinação destes dois. Então, o que você vai fazer?

Então, a pedido do mestre Shih-t'ou, Yao-shan foi até a montanha de outro mestre, chamado Ma-tsu.

Ma-tsu: Apenas a mente levanta as sobrancelhas e pisca os olhos. Às vezes, gestos ocorrem, às vezes não. Não há diferença. Então, o que você vai fazer?
[Yao-shan curva-se em reverência.]
Ma-tsu:
Que visão você teve para se curvar tão profundamente?
Yao-shan: Quando eu estava diante do mestre Shih-t'ou, me senti completamente diferente, como um mosquito tentando penetrar em uma vaca de ferro.
Ma-tsu: Através da maravilhosa bondade de Shih-t'ou, você está desperto. Mas agora, você deve se tornar mais refinado!

Retornando ao seu monastério, Yao-shan sentou-se despreocupadamente no salão do templo. Então, o mestre Shih-t'ou perguntou:

Shih-t'ou: O que você está fazendo?
Yao-shan: Nada!
Shih-t'ou: Então, você está sentado em inatividade.
Yao-shan: Sentar-se em inatividade seria fazer algo.
Shih-t'ou: Que tipo de nada você está fazendo?
Yao-shan: Nem mesmo todos os sábios da história poderiam responder.
Shih-t'ou: É porque falar não está relacionado com isso.
Yao-shan: Nem ficar em silêncio está relacionado com isso.
Shih-t'ou: Nem mesmo um orifício para se passar uma agulha.
Yao-shan: Plantar flores em uma lisa pedra de rio.

Yao-shan recebe a transmissão total.


37. De Yao-shan para Yün-yen

Depois de estudar por 20 anos com o mestre Pai-chang, o monge Yün-yen decidiu visitar o mestre Yao-shen.

Yao-shan: Com quem você treinou?
Yün-yen: Com Pai-chang, durante 20 anos.
Yao-shan: O que ele ensina?
Yün-yen: Ele geralmente diz, "minha expressão contém todos os cem sabores".
Yao-shan: O que é essa expressão total, que não é salgada nem não-salgada?
[Yün-yen fica em silêncio.]
Yao-shan: Se você hesita, mesmo que superficialmente, o que fará quanto ao reino do nascimento e da morte, que está bem diante dos seus olhos?
Yün-yen: Não há nascimento e não há morte.
Yao-shan: Vinte anos com o grande Pai-chang ainda não te liberaram da afirmação e negação habituais. Pergunto novamente, o que Pai-chang ensina?
Yün-yen: Muitas vezes ele diz, "olhe além dos três modos de olhar, compreenda além dos seis modos de compreensão".
Yao-shan: Esse tipo de instrução nada tem a ver com a iluminação real. O que ele realmente ensina?
Yün-yen: Uma vez, o mestre Pai-chang entrou no salão do templo para fazer um discurso. Os monges estavam esperando, de pé, em filas estreitas. De repente, o sábio mestre começou a nos bater com seu largo bastão de madeira, com toda força. Nos espalhamos por todas as direções e o mestre gritou, "Ó monges! O que é isso? O que é isso?"
Yao-shan: Obrigado por sua bondade, finalmente pude encontrar, face a face, o meu admirável irmão Pai-chang.

Então, Yün-yen encontrou sua própria face, despertou sua natureza original.


38. De Yün-yen para Tung-shan

Quando pequeno, Tung-shan estudava o Sutra do Coração. Certa vez, ao ler o trecho "não há olhos, ouvidos, nariz...", ele tocou seu próprio rosto e se perguntou: "Eu tenho olhos, ouvidos e nariz. Por que o sutra diz que ele não existem?" Aos 20 anos, Tung-shan tornou-se monge e ficou intrigado com um kôan, que termina citando uma frase do Avatamsaka Sutra:

Pergunta: O que é a mente dos antigos buddhas?
Resposta: Cercas, muros, telhas e seixos.
Pergunta: Os fenômenos não-sencientes podem pregar o dharma?
Resposta: Certamente, o não-senciente prega continuamente, vigorosamente, eloqüentemente.
Pergunta: Qual é a base textual para essa afirmação?
Resposta: Nenhum mestre apresentaria ensinamentos que contrariassem a harmonia dos sutras que registram as palavras de Buddha. "Os mundos, os seres sencientes e todos os fenômenos do passado, do presente e do futuro, proclamam o dharma."

Pensando nisso, Tung-shan foi perguntar ao mestre Yün-yen:

Tung-shan: Quem pode perceber o fenômeno não-senciente proclamando dharma? Quem pode ouvir os antigos muros de pedra proclamando a não-dualidade?
Yün-yen: Apenas indo além do senciente é que é possível ouvir a proclamação primordial do fenômeno não-senciente.
Tung-shan: Você pode ouvi-la?
Yün-yen: Se eu não estivesse apresentando-a agora, você não poderia ouvir a minha exposição do dharma.
Tung-shan: Não quero ouvir a sua exposição se ela obscurecer o som de todos os fenômenos proclamando o dharma.
Yün-yen: Se você não pode apreciar o meu ensinamento, como ouvirá o ensinamento universal que vem de todas as direções? Eles não são diferentes!
Tung-shan: Agora estou desperto! Que maravilhoso! A proclamação da não-dualidade por todos os fenômenos ocorre simplesmente pelo fato do fenômeno aparecer como um fenômeno. Antes, com o ouvido convencional, eu não podia ouvir o som do indescritível. Agora, ouvindo o olho sabedoria, o indescritível fala, eloqüentemente, em todos os lugares.
Tung-shan: É exatamente como é.

Indo além do senciente e do não-senciente, Tung-shan ouviu a proclamação de todos os fenômenos e despertou. Que maravilhoso!


39. De Tung-shan para Tao-ying

Como monge, Tao-ying não se interessava muito pelas escrituras, mas tinha praticado extensivamente com vários mestres Zen. Finalmente, encontrou o mestre Tung-shan.

Tung-shan: Qual é o seu nome?
Tao-ying: Eu sou Tao-ying.
Tung-shan: Qual é o nome além de todos os estágios da evolução, além de todos os estados da realização?
Tao-ying: Falando além de todos as perspectivas, Tao-ying não pode dizer, "Eu sou Tao-ying.".
Tung-shan: Este é, precisamente, o mesmo modo com o qual respondi ao meu mestre. Obrigado, caro amigo, meu caminho de totalidade vai se expandir além de todos os horizontes.

Com esta transmissão, começou a linhagem Ts'ao-tung, que posteriormente seria chamada de Sôtô, no Japão, e que continua a levar o caminho da totalidade até os dias de hoje.


40. De Tao-ying para Tao-p'i

Tao-p'i era o ajudante do mestre Tao-ying. Certa vez, o mestre deu o seguinte conselhos aos seus alunos monges:

Vocês falam de mais. Vocês vomitam palavras. A pessoa completamente iluminada torna-se imóvel, como um leque durante o inverno. O musgo cresce sobre os lábios. O silêncio não envolve nenhum esforço na meditação. É um expressão natural.

E, ao entrar no salão do templo, o mestre lhes disse:

Se vocês quiserem atingir um resultado ilimitado, vocês devem ser tornar ilimitados. Mas se vocês já são ilimitados, por que ficam ansiosos para conseguir um resultado ilimitado?

Tao-p'i, que estava de pé ao lado do mestre, subitamente despertou.


41. De Tao-p'i para Kuan-chih

Certa vez, o compassivo monge Kuan-chih perguntou ao mestre Tao-p'i:

Kuan-chih: Os antigos sábios dizem, "Não posso gostar de conceitos convencionais e aparências mundanas." Venerável mestre, do que você gosta?
Tao-p'i: Eu sou estes antigos sábios e tenho sido assim desde o princípio.

Assim, Kuan-chih recebeu diretamente a transmissão dos antigos sábios, que vão além de todos os conceitos convencionais, de todas as aparências mundanas.


42. De Kuan-chih para Yüan-kuan

Yüan-yan era monge ajudante do mestre Kuan-chi. Certa vez, Yüan-kuan estava acompanhando o mestre até o salão do templo, carregando um dos mantos dele. Então, Yüan-kuan desdobrou o manto do mestre, que perguntou:

Kuan-chih: O que está realmente acontecendo sob este manto?
[Yüan-kuan permanece em silêncio.]
Kuan-chih: Estudar e praticar o caminho de Buddha, sem descobrir o que está sob o manto, cria o maior dos sofrimentos. Por favor, faça-me essa mesma pergunta.
Yüan-kuan: O que está realmente acontecendo sob o manto?
Kuan-chih: Uma profundidade intimidade!
[Yüan-kuan coloca o manto sobre os ombros do mestre Kuan-chih e, chorando de emoção, faz três prostrações diante dele.]
Kuan-chih: Agora você está realmente desperto! Mas você poderia me expressar isso?
Yüan-kuan: Sim!
Kuan-chih: O que está realmente acontecendo sob o manto da transmissão?
Yüan-kuan: Uma profundidade intimidade!
Kuan-chih: E uma intimidade ainda mais profunda!

Sob o manto da transmissão, a profunda intimidade sela o despertar de Yüan-kuan.


43. De Yüan-kuan para Ta-yang

Desde a sua ordenação aos 18 anos, Ta-yang foi um monge muito dedicado. Uma vez, durante uma viagem de peregrinação, ele encontrou o mestre Yüan-kuan e perguntou sobre um lugar muito especial:

Ta-yang: Onde fica o local da iluminação absoluta de Shakyamuni? Onde está a mandala sem forma do despertar?
Yüan-kuan [apontando para uma pintura de Avalokiteshvara]: Este é um excelente desenho do sábio Wu.
[Ta-yang fica em silêncio por um instante e, quando está prestes a falar, o mestre Yün-kuan se levanta e o agarra pelos ombros.]
Yüan-kuan: Aqui está a forma! Onde está a não-forma?
[Ta-yang desperta completamente e permanece em silêncio.]
Yüan-kuan: Você está iluminado! Vamos, diga algo!
Ta-yang: Não estou me recusando a falar, estou apenas evitando formar palavras que possam, um dia, ser anotadas por alguém.
Yüan-kuan: O que você acabou de falar será gravado em uma rocha!

E quem poderia imaginar que, um dia, as palavras do despertar de Ta-yang seriam gravadas nas páginas da Internet, ou impressas em folhas de papel? Admirável mundo novo!


44. De Ta-yang para T'ou-tzu, por intermédio de Yuan-chen

T'ou-tzu foi para um monastério aos 6 anos de idade e recebeu a ordenação completa aos 14. O mestre Ta-yang, com sua grande sabedoria, percebeu a existência de T'ou-tzu, que seria o seu sucessor, mas eles estavam separados por uma grande distância. Ao contrário dos mestres indianos, os mestres da China não saíam em busca de sucessor: eles permaneciam em suas montanhas, em seus monastérios, aguardando o aparecimento de alguém que pudesse receber a transmissão; e o mestre Ta-yang acabou falecendo antes de encontrar T'ou-tzu.

Mas, a pedido do mestre Ta-yang, o grande mestre Yuan-chen da linhagem Lin-chi [jap. Rinzai] ficou responsável pela transmissão. Ao receber T'ou-tzu, o mestre Yuan-chen fez uma pergunta, um kôan, seguindo o estilo de sua linhagem:

Qual é a realidade que não é fala nem silêncio?

Ao ouvir essa pergunta, T'ou-tzu despertou profundamente, assim como o mestre Ta-yang despertara no passado. Três anos depois, o mestre Yuan-chen fez outra pergunta a T'ou-tzu:

Qual é a essência daquele kôan?

Quando T'ou-tzu estava prestes a falar, o mestre levantou sua mão direita e tapou a boca do sucessor. Finalizando a transmissão, T'ou-tzu fez três prostrações diante do mestre Yuan-chen.


45. De T'ou-tzu para Tao-k'ai

Qualquer frase, por mais sábia que seja, ainda é um mero conceito, uma expressão parcial da verdade; ficar em silêncio também. Isso fica claro na transmissão do mestre T'ou-tzu para Tao-k'ai:

Tao-k'ai: As palavras dos antigos buddhas tornam-se comumente aceitas, comuns como chá e arroz. Há alguma sutileza que possa atrair as gerações futuras ao ensinamento da não-dualidade?
T'ou-tzu: Você acha que o poder que o imperador tem para declarar leis em seu reino depende do que os imperadores do passado declararam?
[Tao-k'ai desperta subitamente; no momento em que vai dizer algo, o mestre passa os fios de seu cetro nos lábios do sucessor e sorri.]
T'ou-tzu: Quando você considera qualquer expressão parcial, você fica sujeito a trinta pancadas!
[Tao-k'ai faz uma reverência ao mestre T'ou-tzu, dá as costas para ele e sai andando.]
T'ou-tzu: Você atingiu finalmente o reino da não-dúvida?

Tao-k'ai continuou andando, sem responder à pergunta do mestre, sem olhar para trás, tapando as orelhas com as mãos. Não falar, não ver, não ouvir; a transmissão está completa.


46. De Tao-k'ai para Tan-hsia

O monge Tan-hsia queria saber qual era a frase que resumia todas as transmissões do dharma. Novamente, uma frase é apenas parcial, e não a verdade absoluta.

Tan-hsia: Qual é a frase única, transmitida por todos os buddhas através do espaço e do tempo?
Tao-k'ao: Se você pensa que pode encontrar a transmissão atemporal em uma frase ou gesto, você está enterrando a lua nas profundezas da terra.

Tan-hsia desperta a sabedoria, como a brilhante lua cheia de outono.


47. De Tan-hsia para Wu-k'ung

Desde os 17 anos de idade, o monge Wu-k'ung estudava os ensinamentos o Dharma de Buddha, especialmente o Sutra do Lótus. Certa vez, o mestre Tan-hsia perguntou-lhe o que é a consciência iluminada, mais primordial do que uma era completamente vazia, sem fenômenos. Wu-k'ung começou a responder com base nos seus estudos.

Ouvindo tudo aquilo, o mestre Tan-hsia pediu que Wu-k'ung fizesse uma viagem. Ele foi para uma montanha distante, onde praticou zazen em profundo silêncio. Ao retornar ao monastério, Wu-k'ung foi observado atentamente pelo mestre Tan-hsia, que agarrou seu ombro esquerdo e lhe disse:

Finalmente você conheceu a luminosidade, diretamente.

E Wu-k'ung realizou o caminho, curvando-se em reverência com profunda alegria.


48. De Wu-k'ung para Tsung-chüeh

O monge Tsung-chüeh foi o ajudante do mestre Wu-k'ung por muitos anos. Um dia, o mestre perguntou:

Wu-k'ung: Como você olha para a vida nestes dias?
Tsung-chüeh: Apenas isto!
Wu-k'ung: Não é o bastante, diga mais.
Tsung-chüeh: Apenas isto é o fato.
Wu-k'ung: Eu não disse que não era o fato, mas o que está além?
Tsung-chüeh: Apenas isto já inclui o que está além.
Wu-k'ung: Então, diga-me o que está além. Expresse-o completamente!
Tsung-chüeh: Não pode ser expresso com palavras.
Wu-k'ung: Você ainda está distante da iluminação.
Tsung-chüeh: Por favor venerável mestre, expresse-o.
Wu-k'ung: Faça a pergunta para mim.
Tsung-chüeh: O que está além?
Wu-k'ung: Apenas não-isto!

Tsung-chüeh "brilha como a não-lua da não-transmissão, despertando todos os seres no não-despertar".


49. De Tsung-chüeh para Hsüe-tou

Vários monges, entre eles Hsüe-tou, aguardavam o mestre Tsung-chüeh no salão do templo. Ao entrar, o mestre diz:

Tsung-chüeh: O Buddha possui um corpo secreto, não um ensinamento secreto. Mas este corpo não era secreto para Mahakashyapa, que sorriu, nem é secreto para o olhar de qualquer ser vivo, pois brilha sempre e em todo lugar, uma lua cheia no céu de outono, totalmente nua e não-obscura.
Hsüe-tou [chorando]: Por que eu nunca tinha encontrado este mistério antes? Podemos manifestar o corpo de Buddha, aqui e agora, para a iluminação instantânea de todos os seres. Que ensinamento inesperado é este?

Algum tempo depois, o mestre Tsung-chüeh chamou o monge Hsüe-tou em seus aposentos e perguntou:

Tsung-chüeh: O que fez você chorar tão intensamente?
Hsüe-tou: O corpo secreto de Buddha não é secreto para Mahakashyapa!
Tsung-chüeh: Você foi profetizado pelos antigos sábios.

Para Hsüe-tou, o corpo secreto do Buddha também deixou de ser secreto, realizando o caminho.


50. De Hsüe-tou para Ju-ching

Aos 17 anos, Ju-ching trocou o estudo de filosofia pela prática da meditação. Seu mestre, Hsüe-tou, freqüentemente perguntava "como é possível limpar o espelho que nunca ficou sujo". Um dia, o mestre pediu que Ju-ching se libertasse da limpeza e da clareza. Dias depois, Ju-ching foi até o mestre Hsüe-tou e lhe disse:

Ju-ching: Venerável mestre, agora posso responder.
Hsüe-tou: Diga imediatamente.
Ju-ching: Eu sou o espelho que nunca ficou sujo. Não há mais impulsos para limpar ou clarear.

Logo depois desta transmissão, Ju-ching fez uma reverência ao mestre e foi limpar a latrina do monastério.


51. De Ju-ching para Dôgen

Dôgen nasceu em uma família aristocrática do Japão. Perdeu os pais ainda muito cedo e passou a ser educado por seus familiares. Aos 13 anos de idade, tornou-se monge e passou a praticar no monte Hiei, o centro da escola japonesa Tendai. Aos 15 anos, passou a praticar na linhagem Zen Rinzai, que tinha sido introduzida no Japão pelo mestre Eisai. Dôgen recebeu o inka-shômei — a confirmação do despertar — do mestre Myôzen, que foi o sucessor de Eisai. Aos 24 anos, ainda insatisfeito, Dôgen viajou à China e encontrou o mestre Ju-ching, que disse aos monges:

Por que vocês ainda estão habitando a mente e o corpo? Vocês ainda estão dormindo acordados! Nada de incenso, nada de sutras, nada de arrependimento, nada de mantras! Não fixem a mente e o corpo em concentração. Para explorar verdadeiramente o Zen, abandonem a mente e o corpo!

As palavras do mestre Ju-ching realmente despertaram Dôgen. Então, ele foi até os aposentos do mestre para lhe oferecer incenso:

Dôgen: Abandonei a mente e o corpo.
Ju-ching: Até mesmo a mente e o corpo que você abandonou foram abandonados.
Dôgen [curvando-se]: Esta é uma percepção temporária. Não tire conclusões precipitadas.
Ju-ching: Não estou tirando conclusões precipitadas.
Dôgen: Mostre-me que não.
Ju-ching: Isto é abandonar a mente e o corpo.
[Dôgen curva-se novamente.]
Ju-ching: Você abandonou o abandono.

Dôgen retornou ao Japão e lá iniciou a linhagem Sôtô Zenshû.


Parte III - Transmissões no Japão

52. De Dôgen para Ejô

O monge Ejô, aluno de Dôgen, já tinha compreendido o verdadeiro significado da vacuidade. Ao ouvir o seu mestre dizer um antigo kôan, "um fio de cabelo atravessa simultaneamente vários orifícios", ele exclamou:

Ejô: Estes orifícios nada mais são do que o próprio fio de cabelo!
Dôgen: Completamente atravessado.

Neste ponto, terminam as 52 transmissões da luz, que foram relatadas pelo mestre Keizan Zenji no livro Denkôroku. Até os dias de hoje, esta linhagem continua a transmitir a luz, que já passou pela Índia, pela China, pelo Japão e, mais recentemente, chegou também ao Ocidente.

Que esta lua cheia de outono possa brilhar e se refletir eternamente no grande oceano, para que todos possam compreender a natureza de Buddha, receber a transmissão do Dharma precioso, e viver na profunda harmonia da imensa Sangha!

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