Ecos do Silêncio — Textos Zen


Shobogenzo Zuimonki

Dôgen Zenji


[ Introdução | Prefácio | Capítulo 1 | Capítulo 2 | Capítulo 3 | Capítulo 4 | Capítulo 5 | Capítulo 6 ]


Capítulo 5

[1] Um dia, numa palestra, meu Mestre disse:

"Não devemos querer nos preservar, ao praticarmos o buddhismo. Mesmo leigos sacrificam-se pela verdade, deixando suas famílias, ou servindo seu Imperador lealmente, mantendo suas integridades intactas. A este tipo de pessoa, chamamos leal ou honrada.

"Na época do Imperador Kao-Tsu1 da dinastia Han, quando este ia abrir hostilidades contra um país vizinho, havia um dos principais guerreiros cuja mãe tinha residência fixa no país inimigo. Achou-se que, possivelmente o guerreiro poderia trair seu imperador, por suas emoções. Kao-tsu, de sua parte, também tinha suas dúvidas quanto ao guerreiro, que sabia-se amava sua mãe, e poderia virar o curso da peleja. Por outro lado, a mãe do guerreiro pensou carinhosamente em seu filho, e no conflito que lhe ia no coração, e lhe escreveu advertindo-lhe a não negligenciar a lealdade para com seu Imperador. Um pouco mais tarde, ela tirou a própria vida, jogando o corpo por sobre a lâmina de uma espada, temendo por seu filho quanto a ela. Mas o guerreiro nunca havia titubeado ou vacilado, em momento algum, em sua lealdade. Mais ainda devem os monges abstraírem-se profundamente em suas práticas. Então estarão unificados com o Caminho. Alguns monges possuem o dom da compaixão, outros nem sonham com isto. Mas se não o possuem, virão a ganhar esta virtude através da diligente prática incessante do buddhismo. Que apenas deixemos de lado nossas caras opiniões preconcebidas e submetamos nosso corpo e mente ao esforço exigido pelo buddhismo.

"No reino do Imperador Kao-Tsu da dinastia Han, um sábio notou: 'Corrigir um erro político é como desatar um nó cego. Aos poucos devemos achar o fio da meada, não às pressas!'

"O mesmo vale para o Caminho. Devemos somente praticar o Caminho após um correto enfoque do significado da prática. Ninguém pode compreender o buddhismo sem um sincero anelo pelo Caminho. Não será a mera inteligência ou capacidade de alguém que lhe há de desvendar o que seja a verdade do buddhismo, a menos que possua a mente que busca do Caminho, e esteja despido de apego ao ego, ou à reputação mundana."

[2] Meu Mestre disse:

"Praticantes Zen não estudam buddhismo para si mesmos, mas pelo buddhismo. Este é nosso Caminho tradicional, renunciamos a nós mesmos, pelo buddhismo. Uma vez tendo firmemente estabelecido esta meta, devemos nos colocar à mercê do buddhismo, sem discriminarmos, baseados em nossos preconceitos, e sem estarmos inclinados a satisfazermos nossas tendências, não importa quão insuportável e aborrecido isto venha a ser. O que não estiver unificado ao buddhismo não deve ser feito, não importa quão ansiosamente queiramos fazê-lo. Tampouco devemos esperar bons resultados por praticarmos o Caminho. Uma vez tendo renunciado a tudo pelo Caminho, devemos treinar, não recaindo em nossas opiniões mais uma vez, mas entregando-nos às normas buddhistas. Isto tudo nos foi mostrado na prática por nossos antecessores. Quando nos livramos de nossas vontades e expectativas, ficamos leves e felizes. Contudo existem aqueles que, com muito tempo livre e muitas idéias na cabeça, comportam-se voluntariosamente, e acham que são muito superiores, bem como seus pontos de vista. Aqueles que assim agem e não ligam à opinião alheia, devem ser um sofrimento para aqueles ao redor. O mesmo ocorre com a prática buddhista. Devemos procurar cultivar relações amistosas com nossos colegas, e seguir o ensinamento do nosso Mestre, abandonando nossas idéias preconcebidas geradas pelo primeiro conhecimento, que tão arduamente conseguimos, e renovando diariamente nossa forma de ver o mundo e a realidade. Então, logo viraremos praticantes Zen.

"Na prática do Caminho, é a pobreza o primeiro elemento que devemos encarar e ao qual nos devemos entregar. Livremo-nos de querer status e lucro mundanos, e seremos autênticos trilhadores do Caminho insondável. Na China Grande Sung, todos os 'monges fantásticos' viviam na pobreza extrema; seus mantos rotos e suas vidas diárias desprovidas de qualquer luxo.

"Quando eu treinava na China Sung, conheci o Mestre Tao-Ju, o secretário do monastério de T'ien-T'ung. Era descendente de uma família nobre, de ministros de Estado, mas deixou sua família e influência, e não procurou tirar partido destas coisas. Dava até dó ver o jeito maltrapilho como se vestia. Porém era respeitado por sua realização do Caminho e tornou-se o secretário de um dos maiores monastérios da China.

"Um dia eu o questionei: 'Você é filho de ministros e sua família é nobre. Por que você é tão maltrapilho?' Ele disse: 'Eu sou monge.'"

[3] Um dia meu Mestre disse:

"'Tesouros e poderes são nossos maiores inimigos, logo nos liquidam. Isto sempre foi assim.' Assim diz a sabedoria popular. Sobre isto conta-se o seguinte:

"'Era uma vez um homem casado com uma famosa beldade. Um político influente lhe exigiu que entregasse a mulher. O homem vacilou e teve sua casa cercada por um exército. Quando ia ser privado de sua esposa, ele exclamou: 'Morrerei por ti!' Sua mulher então saltou da torre e se espatifou no solo, afirmando: 'Também sou capaz de morrer por amor!' O marido, que escapou da morte então, contou esta história mais tarde.'"

[4] Meu Mestre disse:

"Em tempos idos, governava esta região um certo sábio. Um dia seu filho, promovido a um novo posto, veio se despedir. Então o governador deu um presente a seu filho: rolos de seda pura.

"O filho disse: 'Você é um homem de palavra. Como pode obter tal quantidade de seda?' ' — Eu a adquiri com meus salários, filho.' O filho foi direto ao Imperador e, entregando-lhe a vistosa seda, narrou a história acima. O Imperador ficou de queixo caído com a honestidade deste rapaz.

"Mas o filho do guerreiro concluiu após reflexão: 'Meu pai manteve sua honra desconhecida para o mundo, enquanto que eu trombeteei a minha aos quatro ventos. Logo, ele tem dez vezes mais sabedoria do que eu, na realidade.

"Isto significa que um sábio não retém sequer um só rolo de seda para si. Aquele que conhece o mundo, sabe se esconder. Este governador adquiriu a seda fina com seus vencimentos. Isto ocorreu com leigos. Mais ainda devem monges se livrarem de suas próprias inclinações mundanas. Se amam de fato o Caminho, jamais devem divulgar ser buddhistas."

[5] Um dia meu Mestre observou:

"Era uma vez um gênio. Alguém lhe perguntou: 'Também quero ser um gênio. Que fazer para me tornar um?' Ele disse: 'Estude o Caminho do gênio.'

"Logo, se alguém quer ganhar o Caminho dos buddhas e ancestrais, em primeiro lugar é mister se enfronhar nele."

[6] Meu Mestre disse:

"Vivia de certa feita um imperador. Reinava sobre o país, e certa vez perguntou o seguinte: 'Governei de forma impecável o reino. Sou satisfatoriamente sábio?' Todos disseram 'Sim', com uma exceção digna de nota. Quando o Imperador inquiriu as causas a esta figura, ele replicou: 'Não deste parte do poder a teu irmão, mas tudo aos teus filhos.' Desgostoso com este comentário, o Imperador baniu este homem do país pelo resto da vida.

"Mais tarde, ele novamente indagou a seus conselheiros: 'Sou compassivo?' Um deles lhe disse: 'Demais. Um imperador compassivo deve ter ao menos um homem verdadeiro, que fale sem papas na língua. O súdito que baniste era na verdade a jóia do reino, de uma lealdade absoluta. Só um imperador compassivo pode ter os serviços de um tal homem.' Profundamente emocionado com esta resposta, o Imperador imediatamente chamou seu leal súdito de volta."

[7] Meu Mestre disse uma vez:

"No reino de Shin-kuang-ti2 de Chin, quando ele baixou um decreto autorizando a ampliação do jardim ornamental do herdeiro do trono, um conselheiro se lamentou: 'Sim, isto é formidável. Talvez cheguem muitos bichos, mas poderemos com isto sustar a invasão de um exército inimigo?' Desistiram da ampliação com isto.

"Novamente o Imperador ordenou a construção de um palácio soberbo, de colunas laqueadas. O conselheiro resmungou: 'Isto é admirável; mas, se o inimigo aproveitar as colunas laqueadas para se infiltrar em nosso reino?' O plano também foi suspenso.

"Com tais meios habilidosos, os confucionistas nos instavam incessantemente a praticarmos o bem, em vez do mal. O mesmo deve ocorrer com monges Zen, que devem socorrer pessoas cujas vidas foram destruídas."

[8] Um dia, um monge perguntou assim a meu Mestre: 'Gostaria de uma resposta definitiva para este assunto: Qual é o melhor, afinal — um homem inteligente sem a mente que busca o Caminho, ou um idiota desperto para esta mente que busca o Caminho?'

Retorquiu assim meu Mestre:

"Este último estará sujeito a retrogradar no Caminho, enquanto que o inteligente um dia por fim entrará no Caminho, apesar deste ser um mistério para si no começo. Logo, o fundamental é o quanto de esforço colocamos na prática cotidiana, quer tenhamos obtido a mente que busca o Caminho ou não.

"Aquilo que se exige de quem pratica Zen é que habite na pobreza. Muitos escritos, buddhistas ou fora do buddhismo, relatam-nos como alguns eram tão extremamente pobres que não tinham onde morar, outros moravam numa barcaça do rio3, alguns se escondiam na Montanha de Shou-Yang4, alguns sentavam-se em meditação nas florestas, alguns viviam em brechas de muralhas, ou nos recessos inabitáveis do mais fundo das montanhas; e como, por outro lado, oferecendo um vívido contraste, alguns eram de tal nobreza e tinham um tamanho poder monetário, que habitavam palácios dourados, cercados de luxo, de ouro e jóias preciosas. Estes escritos acima referidos nos contam sobre estes dois tipos de pessoas distintas, mas em princípio nos urgem a sermos pobres, desapossados e desapegados, livres. Criticando os ignorantes por seus deslizes, devemos repreender duramente os ricos por sua arrogância."

[9] Meu Mestre disse:

"Monges nem devem recusar doações nem devem se orgulhar de recebê-las.

"Mestre Eisai, recentemente falecido, disse de certa feita: 'Regozijar-se de receber doações é contra os preceitos buddhistas; mas não receber tampouco é, porque vai de encontro aos bons desejos de doadores sinceros e devotados.

"Como dizem, doações não são feitas para nós mesmos, mas para os Três Tesouros. Portanto, devemos aceitar aquilo que porventura nos tiver sido ofertado como doação aos Três Tesouros."

[10] Meu Mestre ensinou:

"Um velho mestre disse: 'Um homem do Caminho é muito forte, mais do que um touro, mas nunca entra em choque com ninguém.'

"Nós, praticantes Zen, mesmo atiçados ao debate de idéias, não nos devemos abalar. Nem que estejamos acima de nosso oponente. Nem devemos ser ríspidos. Nem olhar zangados para os outros.

"Muitos têm a tendência à benevolência para com os outros, mas também amiúde ralham ou fitam exasperados os outros. Com isto, aquilo que chamamos de 'espírito de resistência' é despertado, e nos veremos rodeados de obstáculos por todos os lados, como uma ilha.

"O Mestre Cheng-Chin5 disse uma vez a sua assembléia de praticantes: 'Numa dada ocasião solenemente jurei eterna amizade com Yun-Feng6 e pratiquei meditação lado a lado com ele. Um dia ele começou a discutir buddhismo violentamente com um de nossos colegas, até que chegaram às vias de fato. Ao amainar o arrufo, Yun-Feng me questionou assim: 'Juraste-me amizade, e não brigaste do meu lado. Explica-te!' Eu apenas me inclinei naquele momento, sentindo-me diminuído e envergonhado.

"Mais tarde ele se tornou um grande Mestre, enquanto que eu vou morando neste pequeno templo. Naquele momento eu senti o erro de uma disputa acalorada sobre buddhismo, e a completa e absoluta inutilidade de uma tal ação. Por isto me havia calado, como um nariz sem fala'.

"Quem está interessado no Zen, deve avaliar esta história. Se estamos anelantes pelo Caminho, devemos ser de dedicação exclusiva, estimando como essencial todo nosso tempo. Sobrará tempo para disputas deste tipo? São de uma inutilidade abismal, tanto para nós quanto para os demais. Isto já é assim com buddhismo, que dirá com um reles assunto mundano qualquer, como política ou literatura.

"Como foi notado acima, um homem do Caminho evita até um touro, embora excedendo-o em poder. Assim, nós Monges não devemos refutar outrem, mesmo se formos de conhecimento mais amplo e requintado.

"Para aqueles sinceros praticantes Zen devemos explicar tudo que sabemos. Mas apenas depois de sermos perguntados três vezes, com medo de matraquear estupidamente. Eu sou amaldiçoado com este defeito; e assim, achando que esta historinha era um aviso para mim, fiz do fato de não discutir com outros sobre buddhismo um ponto capital, desde aquela ocasião."

[11] Meu Mestre disse:

"Se há uma coisa que os velhos Mestres têm em comum é nos advertirem contra o fatal desperdício de tempo, dizendo: 'Faça sempre o melhor uso de cada instante.' Praticantes Zen devem avaliar, mesmo o menor período de tempo possível, como sendo precioso para a prática. Nossa vida é de uma impermanência absoluta, e o tempo dispara feito uma flecha forjada de ferro. Nesta fugaz e fugidia existência, façamos o esforço de nos disciplinarmos no buddhismo e ignorarmos totalmente o que não for de acordo com isto.

"Freqüentemente escutamos hoje em dia frases como: 'Não podemos dar as costas à família', ou 'Nosso patrão não deixa.' Outros choramingam: 'Temos filho, família, que cuidar', ou 'É necessário lutar pela sobrevivência', ou 'Não temos dinheiro para comprar roupa de monges', ou ainda 'Não possuo capacidade física e mental para adquirir a realização nesta vida presente.'

"Com este fatal modo de ver o mundo, não deixam pais, família, filhos, patrões, esposas ou demais apegos, e jogam suas existências lixeira abaixo. Somente às portas da morte, querem seu tempo e suas vidas de volta, para viverem como deviam e não fizeram.

"Devemos estar resolutos em sentarmos calmamente para achar a verdade buddhista, logo que isto nos for possível. Nem pais nem patrões nos outorgam a felicidade. Nem família nem outros, nos amenizam o sofrimento. Nenhuma medida de segurança monetária nos livra da transmigração da vida e da morte. Não há criatura alguma que afinal nos possa ser de qualquer ajuda. Se jamais ousarmos praticar o Caminho, julgando não termos capacidade de alcançar a felicidade, quando o faremos então? Devemos a tudo e a todos abandonar, e nos dedicar de todo o coração apenas e exclusivamente ao Caminho. Não devemos fazer isto amanhã, mas hoje, agora, neste momento vivente."

[12] Meu Mestre afirmou:

"Na prática do Caminho, fundamental é o desapego. Não importa o volume de conhecimento que possamos ter obtido, cairemos em estados demoníacos, a menos que estejamos soberana e integralmente desapegados. Um velho mestre disse: 'Sem entrega completa ao buddhismo, buddhas e ancestrais, não nos tornaremos um absoluto.' Estar livre do apego é abandonar corpo e mente ao buddhismo, olvidados de nosso próprio sofrimento. Quando mendigamos, receamos que outros o julguem ridículo ou indigno. Mas ao pensar assim, abre-se um abismo entre nós e o Caminho. Pratiquemos esquecidos dos pontos de vista deste mundo ilusório, e cientes apenas da visão do mundo buddhista. É por causa do apego inato também que nos julgamos ineptos na prática, um erro mental. Também é devido a este apego que levamos em conta nosso status neste mundo, ou ligamos para o que os outros julgam correto, com seus pontos de vista morais. Devemos praticar apenas o buddhismo, abandonando o mundo."

[13] Um dia eu indaguei de meu Mestre: 'O que é aquilo a que devemos nos dedicar exclusivamente num monastério Zen?'

Meu Mestre respondeu assim:

"É a prática de Zazen. Devemos fazer Zazen no andar de cima e no andar de baixo. Não devemos prestar atenção aos outros, mas fazer Zazen tão concentrados como se fôssemos surdos-mudos."

[14] Um dia meu Mestre disse:

"Mestre Ta-Tao7 disse: 'Eu deixo a brisa doce passar por mim e adormeço de papo para o ar. Eu sinto um prazer maior do que um mandarim ornado em brocado.' Este mestre de tempos de outrora pronunciou estas palavras, mas estas me enchem de dúvida e perplexidade. Com as palavras 'ornado em brocado' queria ele dizer um homem que dá importância ao status mundano? Se for o caso, é absurdo comparar-se a um homem deste quilate. Ou será que ele quis dizer um praticante buddhista? Neste caso, por que disse então 'Eu sinto um prazer maior do que um mandarim ornado em brocado'. Parece que ele estava deveras ligado ao brocado , o que não ocorre com uma pessoa iluminada. Esta pessoa não se apega a ouro, nem a lajotas, porque não discrimina entre os dois.

"Foi por esta razão que o Buddha Shakyamuni comeu a refeição regada a leite oferecida por uma camponesa, bem como aceitou igualmente a ração de aveia que é usada para alimentar cavalos nas estrebarias. Buddha não fazia diferença entre estas duas coisas como alimento! Dentro do buddhismo, estas discriminações como 'inútil' e 'precioso' não existem; somente na moral humana comum é praxe diferenciar entre 'superficial' e 'profundo'. Neste mundo encontramos por vezes pessoas que se recusam a aceitar ouro e jóias porque possuem alto valor comercial. Em contrapartida, achamos freqüentemente quem leva para casa lajotas e pedras porque nada valem. Originalmente, não são ouros e jóias escavados do chão? E lajotas e pedras também não? Por que então discriminar entre os dois, crendo ser um deles superior em valor? Por certo que, possuindo coisas preciosas, isto nos atilaria ao apego ; mas também estaremos apegados se preferirmos coisas que nada valem. Nós, praticantes Zen, devemos estar atentos a isto."

[15] Meu Mestre contou de certa feita a seguinte história;

"Mestre Myozen8, meu falecido mestre, planejava uma viagem à China Continental, quando seu próprio mestre, Myoyu, um monge de alto escalão do monastério de Hiei, ficou doente e prestes a falecer.

"Disse então Myoyu a Myozen: 'Eu estou doente e moribundo. Quero que fiques aqui e cuides de mim até que eu venha a morrer, rezando por mim depois que eu falecer. E que partas para a tua acalentada viagem à China somente após assim fazeres.'

"Myozen reuniu então seus discípulos e debateu o assunto com todos. Disse ele então:

"'Devo tudo que tenho e sou a este meu Mestre, que de mim se encarregou desde o falecimento de meus pais, há muitos anos atrás. Minha dívida para com ele é impagável. Devo a Mestre Myoyu o fato de ter podido me inteirar dos ensinamentos, tanto Mahayana quanto Hinayana, esotéricos bem como exotéricos 9; o fato de ter podido estar ciente da causalidade e de poder distinguir o certo do errado; e, não menos de tudo, de perceber que a verdade está ao meu alcance e depende de mim, e de estar querendo ir à China para desvendá-la. Mas agora, eis que meu Mestre está à beira da morte.

"Declinar seu pedido nestas circunstâncias extremas me é deveras penoso. Mas a razão pela qual quero enfrentar esta viagem à China não é para mim mesmo, mas pela compaixão buddhista. Quero que cada qual de vocês expressem suas opiniões sobre esta questão, se puderem, por favor.'

"Naquela ocasião, todos os presentes lhe deram uma negativa quanto a sua viagem para a China, dizendo mais ou menos o seguinte: 'Não vás. Teu Mestre está às portas da morte. Podes deixar para realizar teu desejo ano que vem apenas, e assim cumprirás teu dever com este homem a quem tanto deves. Qual o problema de perder um ano, indo à China somente no ano que vem? Assim todos ficarão felizes, tu e ele também.'

"Então, tolo que era, eu também afirmei: 'Se estás feliz com tua realização espiritual presente, deves forçosamente permanecer ao lado de teu Mestre.' Mestre Myozen concluiu assim, após me ouvir: 'Tens razão. Estou feliz com o que já ganhei com a prática buddhista, e a longo prazo é possível que eu me torne um Buddha.'

"Eu disse: 'Fica, neste caso.'

"Quando todos expressaram seus pontos de vista, meu Mestre arrematou:

 

"'Todos vocês me aconselharam a permanecer, sem uma única exceção. Mas eu penso de forma distinta. Mesmo que eu fique e trate de meu mestre, não o livrarei da morte se ele tiver que falecer. Se eu me quedar aqui, a dor não lhe posso mitigar. Mesmo que eu lhe faça infindáveis cerimônias após a morte, da transmigração do nascimento e morte não o posso livrar. Ficar aqui e obedecer aos seus desejos não é ser seu amigo. Quiçás isto o console muito, mas nada significa para mim. Se ele por acaso se opuser à minha vontade pelo Caminho, terá cometido um equívoco condenável.

"Mas se eu puder realizar meu desejo, ajudarei muitos seres a se içarem fora do oceano da ilusão e a compreenderem suas vidas, mesmo contra a vontade errônea de meu mestre10. Se eu puder realizar estas ações , terei retribuído sua bondade para comigo. Ao atravessar esta faixa de oceano perigosíssimo entre o Japão e a China, posso sucumbir e não conseguir realizar meus objetivos, mas meu sincero almejar pela verdade sobreviverá ao meu corpo físico e durará muitas vidas no futuro. Devemos procurar emular Hsuang-Sang Tripitaka11, cujas aventuras as conhecemos bem. Não está por certo de acordo com a vontade de Buddha que, contra a vontade de um só ser, eu deva desperdiçar meu tempo precioso, e que se está esvaindo. Eis pois minha decisão definitiva: Vou à China.' Assim, finalmente, meu Mestre fez a travessia até a China.

"Podemos claramente inferir desta história quão anelante meu falecido mestre estava para entrar no Caminho. Logo, concluímos que nós praticantes não devemos nos imolar inutilmente, nem por nossos mestres, nem tampouco por nossos pais, pois isto vai contra a prática do Caminho, que é a coisa mais nobre que temos nesta vida.

Neste momento eu desferi uma pergunta a meu Mestre: 'Compreendo que devemos preferir o buddhismo a nossos pais ou mestres. Contudo, nas ações dos Bodhisatvas está escrito que devemos dar mais peso à coletividade que aos desejos particulares. E, no entanto, podemos observar nesta história que o Mestre Myozu estava doente e abandonado , só com seu discípulo de confiança, Myozen. Mas o que eu entendo é que Mestre Myozen estava apegado demais ao buddhismo para cuidar de seu velho mestre. Não seria esta ação de fato uma violação dos preceitos do Bodhisatva? Monges devem observar as elevadas atitudes dos famosos santos, ao que me parece. Em que dizendo, não deveria ele ter ficado e tratado seu amigo e protetor? Minha conclusão desta história é que ele estava apegado demais ao buddhismo. Que pensas a respeito disto?'

Meu Mestre disse:

"É a boa ação de Bodhisatva eleger o mais puro e elevado sobre o inferior, a cada passo que dá por este mundo. Sentir-se obrigado a pais e mestres é apenas um prazer ilusório nesta vida impermanente. Devemos apenas seguir o buddhismo, desdenhando a parte emocional muito ligada; e através desta ação, aparentemente seca e fria, poderemos compreender aquilo que o buddhismo nos quer mostrar, que supera este mundo. Devemos procurar entender isto com clareza."

[16] Um dia, disse meu Mestre:

"Ouvimos com certa freqüência inquietante a seguinte frase: 'Não captamos completamente o sentido da palestra do mestre.' Quem não consegue compreender por que falam assim — sou eu. Talvez achem erro no que o mestre expõe porque está aqüém de suas compreensões das doutrinas buddhistas. Se é assim, isto prima pela tolice e pela falta de senso. Ou será que não haverá mesmo má vontade de compreender?

"Então, por que chegaram a inquirir seus mestres sobre assuntos ligados ao buddhismo, para começar? Ou são suas dúvidas geradas pela ilusão mental? Se for este o caso, é uma ilusão de uma duração deveras prolongada.

"Devemos praticar o Caminho seguindo estritamente os ensinamentos do mestre com quem ora treinamos, concordando ou não com ele; e devemos tomar tento de não insistirmos nos nossos termos contra os de nosso mestre. Assim é que se tem praticado o Caminho por todo o sempre.

"Aconteceu há tempos atrás que um de meus amigos, extremamente ligado aos seus próprios conceitos, foi treinar com um certo mestre. Achando que sabia já tudo, nada fazia contra sua própria vontade, e gastou assim sua vida em vão, incapaz de por os pés no Caminho buddhista. Inteirando-me de tal, compreendi que o contrário deveria ocorrer na prática do Caminho.

"Esforçando-me para disto me recordar, treinei seguindo os trilhos deitados por meu Mestre, até me achar completamente iluminado. Tempos depois me deparei com a seguinte passagem num Sutra: 'Quem almeja uma compreensão do buddhismo, tem que se desvencilhar, por todos os meios, de apegos a opiniões fixas e preconcebidas, durante os três períodos de tempo12.' Compreendi naquele instante que aos poucos devemos modificar nossos pontos de vista passados, e não ficar apegados cegamente a eles, como se fossem viseiras usadas por cavalos. Os Preceitos Caseiros de Confúcio sugerem que aquele conselho que nos é benéfico é duro de aceitar e de assimilar. Quer dizer, que é sempre contra nossa vontade iludida. Mesmo neste caso, devemos nos esforçar para segui-lo, e logo poderemos dele nos beneficiar."

[17] Um dia, meu Mestre deu uma palestra para o seguinte efeito:

"A mentalidade da pessoa não é má ou boa de nascença. As circunstâncias e ocasiões determinam o que podemos fazer, seja isto bom ou ruim. Por exemplo, ao enfrentarmos uma prática fundo na montanha ou na floresta , fomos levados até lá porque acreditamos ter sido uma escolha propícia para aquele momento no qual vivíamos, longe das habitações humanas comuns. Por outro lado, às vezes podemos ficar tristes e desanimados com estes locais isolados, como montanhas e florestas, e cremos que uma proximidade maior do convívio humano, seja mais favorável. Isto é uma evidente demonstração de que em nossa mente nada há originalmente bom ou mau, positivo ou negativo. Somente as boas ocasiões nos trazem felicidade, enquanto que as desfavoráveis, infelicidade. Não creiamos pois ser nossa mentalidade inerentemente imbuída do mal. Sigamos apenas as boas e favoráveis circunstâncias."

[18] Meu Mestre ensinou o seguinte:

"Como somos influenciados pelas palavras alheias!

"Os comentários do Mahaprajna-Paramita Sutra13 nos relatam esta história:

"'Suponha agora que um tolo possua uma jóia preciosa e que venha alguém e lhe incuta a seguinte idéia : 'Que desprezível és. Como podes se atrever a possuir algo de tão bom?' Atônito, ele tenta seguir as palavras do outro, até perder a jóia, porque se apega a sua reputação pública e às opiniões alheias. Sacrifica assim, o néscio, a jóia pela reputação.'

"Eis aí um resumo sucinto daquilo que é conhecido como a 'mente humana'. Alguns, achando ser aquela opinião correta, logo a seguem, com medo dos demais. Outros, detestando o que foi afirmado, repudiam-no, temendo as opiniões de outrem. Ao seguir o bem e o mal, nossa mente é levada por estes pesos de avaliação, como por imãs. Segue-se que qualquer pessoa má, logo melhorará se mantiver a companhia de pessoas excelentes. O contrário ocorre contudo, quando mantemos a companhia de pessoas prejudiciais: primeiro as acharemos pérfidas, mas logo em seguida a elas nos acostumaremos e seguiremos, inconscientemente até.

"Somos tão caprichosos que, se alguém nos implora para lhes darmos algo que necessita, o fazemos cheios de má vontade. E noutras ocasiões quando porventura queremos oferecer algo a alguém, se boa razão se apresentar, omitimos nosso presente.

"Conclusão: nós praticantes Zen, mesmo que não possuamos a mente que busca o Caminho, devemos procurar formar um elo com bons amigos e obter uma oportunidade de ficarmos familiarizados com uma coisa boa. Aqueles que estão com os pés firmemente fincados no Caminho, tentarão ouvir freqüentemente aquilo que lhes dê mais determinação para se estabelecer no Caminho; e ao ouvi-lo, tanto mais assíduas serão suas práticas. Aqueles faltos do espírito que busca o Caminho por fim nele entrarão devido a suas associações a bons homens, apesar de no começo parecerem nada compreender do que está sendo dito. É como se estivéssemos andando numa cerração e neblina espessas; e, antes que nos déssemos conta, nossas roupas se vêem umedecidas com o orvalho.

"Logo, devemos estudar os Sutras repetidas vezes, mesmo estando já íntimos com eles; e com freqüência devemos nos aproximar deles mesmo que estejamos fartos deles; e constataremos serem suas palavras cada vez mais cheias de significado profundo. Devemos por de lado um obstáculo a nossa prática, não importa o quanto custe. Devemos procurar pela companhia de excelentes amigos e praticar o Caminho juntos."

[19] Meu Mestre constatou:

"Mestre Ta-Hui14 adoeceu de certa feita, e na ocasião seu médico lhe confidenciou a gravidade do edema em sua perna.

"Mestre Ta-Hui quis se certificar da extensão do mal: 'Neste caso, corro perigo de vida?' Seu médico lhe disse: 'Há uma probabilidade.'

"Agora que estou por um triz, aproveitarei para praticar tanto mais assiduamente o Zazen.' E fazia Zazen incessantemente, como todos os mestres. Ao cabo de algum tempo, o edema desinchou e o quadro geral se normalizou.

"Assim era este velho mestre. Tanto mais praticava, quanto mais estava sua vida por um fio. Nenhum praticante deve relaxar na sua prática, a não ser que esteja doente.

"Muitos problemas e doenças têm origem psicossomática. Suponhamos que um homem seja tomado de uma crise aparentemente infindável de soluços. Se alguém vier por trás e lhe der um susto, ele se esquece dos soluços e deles se recupera. Quando eu viajei de navio à China, a bordo tive uma diarréia; mas de repente armou-se um terrível temporal e o navio corcoveava como um potro selvagem; e com isto me recuperei da doença, esquecendo-me dela. Logo, se tão assíduos formos na prática, que de tudo mais nos esqueçamos, não tombaremos enfermos."

[20] Meu Mestre disse:

"Há um provérbio que diz assim: 'Temos capacidade de sermos chefes de família se nos assemelharmos aos surdos-mudos.'

"Quer dizer que chegaremos a dominar a prática se às críticas alheias formos surdos, e aos seus erros, mudos; e que somente um homem deste feitio pode ser chefe de família.

"Apesar de ser somente um dito popular, é aplicável a todos os praticantes Zen. Isto é: o fato de podermos levar adiante nossa prática, mantendo-nos surdos às fofocas e intrigas de outrem, e quedando-nos mudos ante aquilo que puderem fazer de bem e de mal. Apenas àquele que totalmente se absorveu e entregou à prática — este Caminho é possível."

[21] Meu Mestre contou:

"Mestre Ta-Hui disse: 'Quem pratica Zen deve adiantar sua prática com a perspectiva mental de uma pessoa atolada em dívidas e que é chamado a uma prestação de contas. Tendo este tipo de perspectiva mental, será fácil de nos iluminarmos.'

"O Hsin-Hsin-Ming15 expõe: 'Não é difícil se entrar no Caminho. A condição fundamental é não seguir jamais a mente que cria discriminações.' Abandonando tal forma de chegar a decisões, logo chegaremos à compreensão das coisas. Para este fim, não devemos ficar apegados a nós mesmos. É importante não praticarmos o Caminho para nós mesmos, mas pelo próprio Caminho. Mesmo que dominemos a totalidade das escrituras sagradas, façamos Zazen tão concentrados, que quebremos o próprio chão onde nos sentamos; sem nos livrarmos de uma visão despida de ego, não nos será acessível o grande Caminho dos buddhas e ancestrais. Devemos tão somente deixar cair nosso corpo e mente pelo buddhismo, abandonando pontos de vista prévios, preciosamente acalentados durante muito tempo; e seguir nossos mestres. E imediatamente nos veremos como pessoas iluminadas."

[22] Meu Mestre falou assim:

"Um velho mestre disse: 'A propriedade encontrada no monastério é gerenciada pelos monges encarregados da administração, que são bem versados na causalidade buddhista, e cujos trabalhos estão bem organizados em diversas seções.' Isto nos leva a pensar que o mestre de nada deve se ocupar, além do Zazen e da direção espiritual daqueles que lhe procuram pelo Caminho, não se preocupando com assuntos que digam respeito ao monastério, grandes ou pequenos.

"Diz-se : 'É preferível ter tido algumas penetrações espirituais na questão da vida e da morte, do que muitas possessões materiais.'

"'Façamos o bem a outros, sem nada esperar de volta; não devemos sequer nos arrepender de termos feito muitas doações.'

"'Estaremos livres de catástrofes se mantivermos nossa boca trancada, parecendo um nariz, que nada diz.'

"'Nossas ações elevadas causarão o respeito dos que as testemunharem. Contudo, aqueles dotados de conhecimento e cultura superiores serão naturalmente reverentes. Mesmo que tenhamos arado a terra profundamente, e inserido a semente devidamente, não podemos estar livres de uma catástrofe natural. Aqueles que a si mesmos fazem o bem, e o mal a outros, não podem escapar da retribuição kármica de suas ações. Quando praticantes Zen lerem o koan, devem buscar seu significado oculto por todos os meios.'"

[23] Meu Mestre afirma:

"Um velho mestre disse: 'Dê um passo além do mastro de 100 metros de altura.' Isto significa que devemos deixar cair corpo e mente, como se galgássemos ao topo do mastro que mede 100 metros de altura, e lá do alto soltássemos mãos e pés.

"Temos vários exemplos disto, os quais devemos cuidadosamente estudar.

"Monges de hoje em dia aparentam uma renúncia ao mundo. Mas, a julgar por suas ações , podemos afirmar que estão distanciados daquilo que monges deveriam estar fazendo. Para monges, aquilo que vem em primeiro lugar é estar desapegado de seus egos, e também do desejo de obter dinheiro e reputação mundanos. Se isto não for assim, inútil16 será nossa prática do Caminho: erraremos nosso alvo, tentando obter o esclarecimento espiritual. Na dinastia Sung, alguns abandonavam seus lares e possessões mundanas, ingressavam num monastério de prática Zen e peregrinavam daqui para ali. Mas, por sua ignorância deste detalhe fundamental, todo este esforço era baldado.

"De fato, no começo podem ter sentido uma vontade de praticar o Caminho e de encontrar um mestre; mas como sua vontade original não estava correta, logo queriam tornar suas altas autoridades conhecidas de todos e, sequiosos de doações, assediavam assiduamente doadores bondosos; ou contavam às suas famílias como eram respeitados, para captarem mais donativos, e não por um desejo de compreenderem a mente de Buddha. Além disto, sempre acham maneiras de demonstrar como estão corretos e os outros errados. As palavras destas pessoas são de uma inutilidade total. Eles estão dirigidos direto para o inferno, assim como aqueles cinco monges perversos17 no tempo do Buddha Shakyamuni. Mas leigos, precipitadamente, admiram este tipo de pessoas, por não saberem o que está correto.

"Contudo alguns monges há que são ligeiramente melhores que os acima mencionados: praticam num monastério Zen, e não estão apegados a donativos nem a seus lares e famílias. Mas, com vergonha de tornar conhecido como são preguiçosos, esforçam-se na frente dos monges encarregados da disciplina, ou shuso, e na ausência deles enlanguescem e esmorecem, perdendo o significado sua saída de seus lares para praticarem o Caminho. Estes podem ser levemente superiores a leigos e dissipadores; mas notam-se neles ainda seus apegos a seus egos e idéias preconcebidas.

"Outros ainda, não ligando para o sacrifício que seus mestres ou shuso têm que fazer para treiná-los, acham que têm que praticar o buddhismo para um auto-melhoramento; e colocam suas energias na prática, certos que através de suas energias, podem chegar ao estado dos buddhas e ancestrais. Podem ser, destes todos mencionados até aqui, os melhores praticantes, mas querem tudo para si mesmos. Portanto, inegoístas não são. Desejam agradar aos buddhas e ancestrais, ou se iluminarem, porque querem progresso mundano, dinheiro e reputação. Lembram aquela pessoa que se agarrava ao topo de um mastro de 100 metros de altura, sem avançar além.

"E dentre todos estes, existe uma pessoa que abandonou corpo e mente pelo buddhismo, só pelo buddhismo e nada mais. Este é o único, de todos os acima mencionados, que merece o nome de um puro monge!

"Estudemos o significado daquele velho ditado: 'Não devemos ficar apegados, nem àquilo que vier de Buddha nem àquilo que nada tiver a ver com o buddhismo.' Podemos interpretar isto como foi explicado acima."

[24] Meu Mestre disse:

"Que não nos preocupemos em garantir a comida e a roupa para sobrevivermos. Quando privados de comida, se então decidirmos pedir a outros, isto é o mesmo que viver como um rico que só pensa em guardar bens. Monges Zen são assim chamados porque são como as nuvens que passam, sem um lugar fixo onde permanecer e só ficam ali onde existem condições. Tampouco ficam estagnados em um lugar; mas, como um regato selvagem, sempre contornam os obstáculos, chegando por fim ao mar. Mesmo que nós nada tenhamos além da tigela de mendigação e de três mantos, enquanto ficarmos esperando que alguém nos sustente e ampare — não é a forma correta de viver, porque quem dá e quem recebe ficam sob constrangimento. Ao sermos sustentados por forma tão suspeita de viver, como poderíamos sonhar em entrar no Caminho dos buddhas e ancestrais? Como aquele tecido mergulhado numa tintura púrpura toma a cor púrpura e um tingido de amarelo fica amarelo, assim viver deste jeito não nos abre possibilidade para uma justa compreensão dos fatos. Procurar pelo buddhismo, enquanto vivendo tão tortuosamente assim, é o mesmo que espremer areia querendo tirar óleo. Devemos por todos os meios procurar permanecer no Caminho, não importa em que percalços. Acumular comida antes de estar com fome, com medo de sofrer privações, não é o meio de vida correto. Anotemos este fato e o estudemos."

[25] Meu Mestre disse:

"Quem deseja se tornar um praticante Zen autêntico, que compreenda que todas pessoas tem um ponto fraco. Dentre os maiores pontos fracos aquele que vem em primeiro lugar é a arrogância. Contra esta arrogância, muitos sábios, tanto no buddhismo quanto alhures, nos previnem sempre.

"Um livro que nada tem a ver com o buddhismo afirma: 'Alguns pobres não são arrogantes; mas todos os ricos são arrogantes.' Isto nos aconselha a não nos orgulharmos de possuirmos riquezas. Nada supera este ponto em importância. Devemos ser atentos quanto a isto.

"Trata-se da arrogância mais completa acharmos ser vastamente superiores a outros, não notando nem mesmo nossa sofrível ascendência. Mas tal tipo de pessoa não é tão difícil de corrigir. Os que são ricos no mundo freqüentemente sentem-se o máximo, por estarem cercados de parentes e amigos bajuladores. Com isto, eles se tornam um espinho para seus vizinhos e conhecidos mais pobres, que os invejam e se sentem maltratados. Como devem agir pessoas elevadas e ricas para não causarem dor aos que as cercam? É difícil aconselhar tais pessoas, pois a prudência não estão entre suas virtudes mais notórias. Mesmo quando forem condescendentes, poderão magoar os demais, se não tomarem precauções extremas. Quem estiver cônscio disto pode ser denominada uma pessoa prudente; por outro lado, aqueles que atribuem suas riquezas e poderes a seus próprios méritos são chamadas arrogantes.

"Um livro de literatura mundana nos diz: 'Não passe pela porta do pobre numa carruagem laqueada.' Logo, mesmo que possamos ter uma tal carruagem toda laqueada, evitemos desfilar com ela na frente dos que nada têm. Este tipo de colocação também pode ser encontrada em certos textos buddhistas.

"No buddhismo, podemos verificar que quem pratica Zen se acha infinitamente acima do comum dos mortais, como o céu está distanciado da terra. Acham que são ricos em conhecimento e sabedoria. É a arrogância mais ousada e impudente ficarmos achando erros e criticando nossos companheiros praticantes, quer sejam principiantes, veteranos ou iguais a nós mesmos.

"Um velho mestre disse: 'Mesmo que derrotemos um sábio, não devemos vencer um idiota.'

"Também é um crasso erro falar mal de outros porque não entenderam aquilo com que estamos bem familiarizados, por termos já estudado e dominado o assunto. Mesmo no caso do buddhismo, nos é vedado criticar o conhecimento, quiçás superficial, daqueles mais veteranos que nós. Devemos tomar tento e ter total atenção à inveja ao redor de nós, se houverem pessoas de alma pequena e mesquinha.

"Quando fiquei no monastério de Kennin-ji, muitos monges me indagavam sobre o buddhismo. Alguns deles eram esquisitos e cheios de defeitos; mas prudentemente eu me limitava a tratá-los bem, e tudo que eu sabia sobre o buddhismo contava a eles, sem nada esconder, não me importando com o tipo de pessoa que eram. Logo, jamais qualquer tipo de obstáculo surgiu entre nós. Os imbecis, apegados demais a seus próprios pontos de vista, sempre se enfurecem ao serem criticados, como pontos doentes do corpo se retraem ao serem tocados; enquanto que as pessoas sábias, ao se familiarizarem com a verdade buddhista, logo e de bom grado trocam seus prévios pontos de vista errôneos por outros mais apropriados. Assim voluntariamente se corrigem. Observemos este ponto com cuidado."

[26] Meu Mestre disse:

"Ao praticar o Caminho, importante é saber as prioridades, para não inutilizar a prática. O mais importante é a prática do Zazen, da qual todos na China Sung dependiam prioritariamente para apreenderem a compreensão do mesmo. Mesmo aquele com uma inteligência inferior estará enormemente acima de uma pessoa vastamente culta, instruída e inteligente, se for assíduo e constante na prática incessante de Zazen. Logo, praticantes Zen devem fazer Zazen, e nada mais. O Zazen apenas é o Caminho dos buddhas e ancestrais. Não há motivos para seguir qualquer outro Caminho que seja."

Então eu indaguei: 'Quando faço Zazen, leio koans18 e os goroku19, consigo compreender melhor estes últimos, mas o primeiro me é totalmente incompreensível. Devo mesmo assim insistir com o Zazen?'

Em resposta, meu Mestre disse:

"É fato: podes talvez obter uma compreensão intelectual de um koan, mas devido a este fato te afastas cada vez mais do Caminho. Os velhos mestres nos aconselham a ler os koans e fazer Zazen igualmente; mas é bom sempre preferir o Zazen — assim ensinavam os velhos mestres. Quem atingir a iluminação compreendendo um koan, o conseguirá devido à sua prática de Zazen. O verdadeiro mérito e força do Caminho provêm do Zazen".

Notas

1. Kao-Tsu, conhecido também pela alcunha de Liu-pang — reinou de 206 a.C. a 195 a.C.
2. Shi-huang-ti (259 a.C. — 210 a.C.) — O primeiro Imperador da dinastia Chin, que unificou o Império, dominando os seis Estados.
3. Chu-yuan — conforme nota 22 do capítulo 2.
4. Pe-i e Shu-t'si (1100 AC): Pe-i era o irmão mais velho, Shu-t'si o mais moço — conhecidos por suas devoções filiais. Quando Wu-Wang, da dinastia, queria conquistar Chou-Wang, eles tentaram dissuadi-lo, em vão. Em conseqüência disto, retiraram-se para os recessos do Monte Shou-Yan, onde morreram à míngua.
5. Cheng-tsing K'e-wen (1025-1102) — Herdeiro buddhista de Huang-lung Hui-nan (1002-1069), fundador da escola Huang-lung.
6. Yun-fen-yueh — herdeiro do Dharma de Ta-yu.
7. Ta-tão Ku-ts'uan — discípulo de Feng-yang Shan-chao.
8. Myozen Butsujubo (1183-1225) — discípulo de Mestre Eisai. Foi com mestre Dogen à China, onde faleceu no monastério de T'ien-t'ung, com 42 anos de idade.
9. Ensinamentos, verdadeiros e adaptados — conforme nota 2 do capítulo 4.
10. Um só — Mestre Myozen.
11. Hsuang-sang Tripitaka (602-664) — nascido em Lo-yang, na China. Decidiu ir a Índia sozinho para resolver sua dúvida sobre o Setsudaijoron. Depois de enfrentar muitas dificuldades ele chegou ao monastério de Nalanda, e retornou para casa trazendo sutras, imagens de Buddha e ossos de Buddha, e traduziu muitas escrituras buddhistas para o Chinês.
12. Os três períodos de tempo: passado, presente, futuro.
13. Notas ao Mahaprajnaparamita Sutra (Ta-chih-tu-lan), em 100 volumes — obra de Mestre Nagarjuna (150-250), da Índia do Sul.
14. Ta-hui Tsung-kao (1089-1163), Monge Rinsai, cuja fama está ligada com a de Hung-chieh (1091-1197), que era um monge da seita Soto. Escreveu o Shobogenzo, em 6 volumes.
15. "Hsin-hsin-ming"(Shinjin-mei) 1 vol. compilado por Seng-ts'an ( -606), o terceiro ancestral, na China, e que consiste de 624 ideogramas chineses. Esta frase é a primeira deste livro.
16. A prática Zen deve ter um sentido de urgência.
17. Cinco monges perversos. Ditos terem enganados outros e conseqüentemente caído no inferno, onde continuam a ser escravos apesar de terem renascido no mundo humano de novo.
18. Koan — conforme nota 13 do capítulo 2.
19. Goroku — biografia das ações e palavras dos mestres.

Adaptado da tradução do monge Ryokyu Marcos Beltrão


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